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O desbravador dos paredões

Com grafites monumentais e colorido apelo pop, Eduardo Kobra se impõe como o artista brasileiro de maior evidência na paisagem das metrópoles pelo mundo

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 8 set 2017, 06h01 - Publicado em 8 set 2017, 06h00

O ADOLESCENTE Carlos Eduardo Fernandes Léo era um pecador contumaz. Nas madrugadas, pichava grafites em uma igreja paulistana. Certo dia, o padre interpelou o moleque. “Achei que fosse tomar um pito. Mas ele falou: ‘Da próxima vez, basta pedir para pintar o muro. Só não faça nada agressivo’.” Com a bênção do padre, Léo — hoje conhecido pelo codinome artístico Kobra — passou a criar grafites mais ambiciosos. Ele vê aí o marco de sua conversão — não religiosa, mas artística. Autor de murais colossais que retratam celebridades e vultos históricos, além de explorar temas engajados que vão da pregação da paz à defesa de golfinhos e índios, Kobra tornou-se o pintor brasileiro mais arroz de festa no circuito mundial desde Romero Britto. Com vantagem de escala: suas obras são inescapáveis na paisagem urbana de Roma a Tóquio.

Nos Estados Unidos, fez um Muddy Waters tocando guitarra entre os arranha-céus de Chicago e um psicodélico David Bowie, da fase Aladdin Sane, em Nova Jersey. Na Itália, usou seu cubismo festivo para reproduzir o Davi de Michelangelo na pedreira de Carrara, onde o mestre renascentista buscava a matéria-prima de suas esculturas. A convite de Madonna, pintou um Nelson Mandela no hospital infantil que a cantora mantém em Malaui, na África. Recentemente, ocupou as paredes de Boulogne-sur-Mer, na França, com um painel duplo do impressionista Claude Monet. Nos próximos meses, vai desbravar paredões na Índia, no Marrocos, na Turquia e em Israel. “Tenho convite até no Cazaquistão”, diz.

Escala colossal – Mural de Salvador Dalí na Espanha (//Divulgação)

Ao mesmo tempo em que ampliava sua expansão internacional, Kobra viu-se, em 2017, no centro de uma controvérsia local que resume o debate sobre sua atividade: afinal, qual a linha que separa a pichação emporcalhadora das cidades do grafite merecedor do status de arte? Ao assumir a prefeitura de São Paulo, o tucano João Doria declarou guerra aos pichadores, mas decidiu preservar alguns murais numa avenida — incluindo um de Kobra. A obra, porém, acabou pichada com um protesto contra o prefeito. “Depois disso, eu mesmo pedi que apagassem o mural”, afirma Kobra. No meio da tensão com o povo do grafite, o artista foi convidado a ser consultor da nova política da prefeitura na área. Não topou. “Criou-se uma pressão, como se ele pudesse ter algum tipo de privilégio. O Kobra é bem-sucedido, e algumas pessoas parecem não tolerar o sucesso alheio”, diz o secretário paulistano de Cultura, André Sturm.

Escala colossal – Bowie psicodélico em Nova Jersey (//Divulgação)

Em vez de enfrentar esse pepino, Kobra tomou o rumo do aeroporto. Mas a intensa atividade internacional também é excruciante para o artista. Há quinze anos, Kobra sofre do mal que vitimou artistas como o brasileiro Candido Portinari: a intoxicação pelos metais pesados presentes em tintas e solventes. Quando começaram a depressão, a insônia e os desarranjos gástricos, ele não tinha noção da moléstia. “Fiz tratamentos errados, tomando doze comprimidos de tarja preta por dia. Um médico queria até me internar”, conta. Depois de sofrer por anos e perder 20 de seus 80 quilos, Kobra fez um exame nos Estados Unidos que confirmou a intoxicação. O tratamento fez o quadro melhorar, mas não livrou o artista da sina. “O grande impeditivo na minha carreira é a saúde. Às vezes, chego ao topo de prédios sem dormir por dias.” Ele agora usa máscara e luvas. Mas a exposição desprotegida às tintas vinha de longe: Kobra, de 41 anos, começou nessa vida há quase três décadas. “Eu saía correndo atrás dele para pedir que levasse a máscara. Mas não podia estar perto o tempo todo”, diz sua mãe, Maria Zineide Léo.

Escala colossal – Mural olímpico de 3 000 metros quadrados no Rio: temas que vão das celebridades à defesa dos índios (//Divulgação)

A trajetória de Kobra percorreu fases diversas. A princípio, ele era um pichador. Com 12 anos, fazia misérias na escola pública em que estudava — foi onde ganhou o apelido Cobra, por ser um ás do desenho —, num bairro de classe média baixa de São Paulo. Pertencia a uma daquelas gangues que espalham seus rabiscos pelos muros. “A vida na rua era tensa. Fui preso três vezes e entrei em brigas violentas”, diz. Depois, Kobra virou grafiteiro — um pichador que assume pretensões artísticas, mas ainda tem a pulsão contraventora de pintar paredes sem pedir permissão. Ele completou sua evolução ao tornar-se muralista — um grafiteiro que, pelas dimensões do trabalho, só consegue atuar com a anuência dos donos de imóveis e das autoridades.

Rebelde com causa – O mural duplo sobre Monet na França (//Divulgação)

O artista perdeu o medo de altura e fez cursos para pintar em cima de gruas. Cada mural pode levar de dez dias a três meses para ser realizado. Com 3 000 metros quadrados, a obra que fez para o Boulevard Olímpico, no Rio, exibindo faces de nativos de diversas partes do globo, entrou para o Guinness como a maior do gênero no mundo. Há poucos meses, ele se superou ao criar um painel com o dobro do tamanho para uma marca de chocolates. Localizado às margens de uma rodovia paulista, o grafite só foi liberado pelas autoridades quando Kobra eliminou detalhes que poderiam distrair os motoristas.

Rebelde com causa – A imagem do Davi em Carrara (//Divulgação)

O sucesso comercial de Kobra faz sentido: assim como a pintura tolinha de Romero Britto, seu trabalho abraça sem pudor o lugar-comum. Quem é fã de um possivelmente vai gostar do outro — caso do prefeito João Doria. Os entendidos em arte podem torcer o nariz, preferindo enaltecer a obra de grafiteiros como a dupla Osgemeos, que fizeram a passagem das ruas para as galerias prestigiosas com desenhos que fundem influência nordestina e barroco pop. Mas é preciso fazer justiça: num mural, a comunicação direta é qualidade. “Goste-se ou não, Kobra faz sucesso. Não adianta ignorar, como se fosse de segunda classe”, diz Baixo Ribeiro, curador de uma galeria paulistana especializada em grafite. Também não se pode negar a engenhosidade do artista. Kobra faz primeiro um estudo em seu ateliê, depois transfere a imagem para os paredões valendo-se da técnica da ampliação por quadriculados. Em meio ao colorido espalhafatoso, às vezes insere elementos virtuosos: o rosto de Niemeyer que fez num prédio da Avenida Paulista traz embutidas as linhas de onze projetos do arquiteto.

Rebelde com causa – Bailarina nas proximidades do Balé Bolshoi, em Moscou (//Divulgação)

Kobra garante que impõe uma condição em qualquer trabalho: “Só topo se tiver liberdade total”. Isso foi posto à prova em 2016, ao ser convidado para criar um mural em Amsterdã. Sua ideia de pintar o retrato de Anne Frank, a menina judia autora do famoso diário em que narra o tempo em que viveu escondida dos nazistas, não agradou às autoridades da cidade holandesa. Temiam-se protestos de racistas e o barateamento da imagem da heroína. Kobra venceu a parada — com a condição de não exagerar nas cores alegres.

Rebelde com causa – Anne Frank num prédio de Amsterdã (//Divulgação)

Obstáculos como esse são raros: em geral, patrocinadores fazem fila por seus murais. Ainda assim, o artista romântico às vezes aflora. “O Kobra paga várias produções na rua do próprio bolso”, diz o amigo e grafiteiro Speto. O jovem contraventor também não sumiu. Depois de pintar uma graciosa bailarina em Moscou, Kobra fez um grafite ilegal para protestar contra a prisão de uma ativista na Rússia. Só divulgou o feito, contudo, ao decolar de volta para o Brasil. O ex-pichador fatura, por baixo, 100 000 reais por obra comercial, tremenda marca para quem antes colhia confusões com padres e policiais. Kobra sofre, mas não rasteja.

Rebelde com causa – Niemeyer na Avenida Paulista, composto com as linhas de seus projetos célebres: um artista que abraça sem pudor o lugar-comum, mas cujo trabalho exibe uma engenhosidade inegável — e requer esforços excruciantes (//Divulgação)

Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2017, edição nº 2547

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