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O crepúsculo da ironia

Uma defesa do humor que recusa explicar-se

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 29 set 2017, 06h00 - Publicado em 29 set 2017, 06h00

“Certo americano muito experiente, a quem conheci em Londres, me garantiu que uma criança saudável e bem alimentada é, com a idade de 1 ano, um petisco bastante nutritivo e salutar, seja fervida, assada, grelhada ou cozida. E não tenho dúvida de que seria ótimo ingrediente para um fricassê ou um ensopado.” Escritas pelo irlandês Jonathan Swift, essas palavras permanecem um dos exemplos mais apetitosos da ironia na literatura: gerações e mais gerações de leitores experimentaram a mesma hilariante sensação de culpa ao alcançar a assombrosa punch­line. O trecho faz parte de Uma Modesta Proposta para Evitar que as Crianças dos Pobres Sejam um Fardo aos Seus Genitores e ao Seu País, escrita em 1729 —época em que a carestia devastava a terra natal do autor. Seguindo o esquema de um rigoroso argumento lógico, Swift sugere que os irlandeses desvalidos transformem seus filhos em guisados e os vendam aos conterrâneos ricos, em nome do equilíbrio econômico e dietético da nação. Será preciso explicar que o elogio ao canibalismo é uma figura de linguagem, que Swift estava criticando a incompetência das autoridades e que o sarcasmo selvagem era uma forma de sublinhar uma realidade igualmente intolerável? Não duvido que o caro leitor seja capaz de captar a ironia; mas, hoje em dia, há sempre o risco de alguém levar as coisas ao pé da letra.

Explicar piadas parece ser a sina da humanidade nesta época obcecada pela santimônia dos sentidos literais. Nas redes ditas sociais, o sectarismo galopante criou compartimentos impermeáveis: espaços seguros onde guetos mentais riem uns dos outros, mas jamais de si mesmos. O entrincheiramento ideológico é o responsável pela domesticação do riso em nosso tempo: queremos saber quais as intenções do piadista, qual seu alvo real, de que lado ele está — para só então determinar se a piada tem o direito de nos fazer rir. Será sempre um riso choco, pois a exigência de sentidos unívocos é a morte do humor. A cada releitura  da Modesta Proposta de 1729, tenho a impressão de que o objeto do escárnio se altera vagamente: às vezes, acho que o racionalista Swift esteja zombando da própria Razão humana; às vezes, acho que esteja espicaçando não apenas os burocratas britânicos, mas toda a nossa espécie; às vezes, tenho certeza de que está tirando sarro de mim. E esse é o triunfo de um ironista. Quando sabemos com certeza absoluta o que um texto está querendo nos dizer, é porque a ironia fracassou.

A morte da ironia já foi anunciada muitas vezes; quero acreditar que o grão de absurdo em toda empreitada humana fará com que ela renasça infinitamente, fênix sardônica na revirada cinza do mundo. Talvez as próximas gerações se revoltem contra a empáfia de nossos tempos; talvez o futuro pertença aos seguidores de Swift. Nesse caso, faço um apelo aos leitores dos séculos vindouros: não tomem o título deste artigo ao pé da letra. Ao declarar o crepúsculo da ironia, talvez eu esteja apenas sendo irônico.

Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2017, edição nº 2550

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