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“Meu menino é um guerreiro”

Claudineia Melo, 28 anos, mãe de Arthur, alvejado por uma bala perdida quando ainda estava no útero

Por Monica Weinberg Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 13 jul 2017, 12h51

Senti de repente um impacto acima da perna esquerda e pensei: “Caco de vidro”. Tinha ouvido barulho de tiros segundos antes e corri para um depósito de bebidas, para tentar fazer as garrafas de muralha. Não deu nem tempo de me jogar no chão. Começou a voar vidro para todos os lados. Mas não foram os estilhaços que me feriram. Quando olhei para a perna, já dormente, vi que uma bala tinha afundado na minha pele. Sangrava, sangrava, e aí veio a dor forte na barriga. “Meu filho!”, gritei. Me levaram para o hospital, me deitaram na mesa de parto, e eu ainda me lembro de ter dito: “Salvem meu menino”. Depois apaguei. Quando abri os olhos, no dia seguinte, foi que eu soube: meu filho, Arthur Cosme de Melo, nasceu de cesariana, às 18h27, com 52 centímetros. O relatório não tinha o peso do bebê. Os médicos preferiram não levá-lo à balança. Quanto menos se mexesse nele, melhor. O tiro atingiu Arthur em cheio.

Desde esse dia, vivo angustiada, rezando pela melhora do meu filho, esperando pela hora da visita no hospital em que ele está, esperando que a dor que eu sinto vá embora. Minha dor não é na perna rasgada pela bala nem no corte da cesariana: é no peito. Arthur ainda tem dois drenos nos pulmões. Já está respirando sozinho, mas fica ligado a um aparelho, que pode ajudá-lo se necessário. A maior preocupação dos médicos é como ele vai se recuperar do estrago que o tiro deixou em sua coluna. Ele passou por uma cirurgia de descompressão da medula, que deu certo. Não entendo muito o que os médicos falam, mas entendo que meu filho tem chance de andar como qualquer outra criança. Olho para suas perninhas, ainda sem movimento. Os braços ele mexe. Até apertou o meu dedo.

Vi o rosto do Arthur pela primeira vez na mesma tarde em que saí do hospital. Ele tinha sete dias de vida. Reconheci meus traços nele. Não pude ainda pegá-lo no colo por causa da lesão na coluna. Foram me contando aos poucos o que tinha acontecido depois de a bala atravessar nosso corpo. Primeiro, soube pelo médico das feridas nos pulmões e na clavícula; depois, meu primo falou da coluna machucada e da possibilidade de ele não poder andar. Desabei. Se na hora do tiro eu estivesse 1 milímetro para o lado direito, não estaríamos passando por nada disso. Arthur estaria em casa, no quarto que montamos para ele, no berço ainda vazio. Faltavam só três dias para a data prevista para o parto normal. Foi a diferença entre nascer na paz e na guerra.

Quem leva uma bala perdida uma vez fica achando que a qualquer momento pode vir outra. Fica o medo. Qual é a chance de uma bala cair duas vezes no mesmo lugar? Minha família vive na roça, no interior da Paraíba. Fui a única de seis filhos a tentar uma vida melhor na cidade grande. Consegui no Rio de Janeiro um bom emprego. Trabalho hoje na tesouraria de um supermercado. Mas agora me falta a paz. Me acertaram durante um confronto entre policiais e bandidos. Eu estava no lugar errado na hora errada, e no meio de uma situação que, de tão absurda, não era nem para existir. Não estou preocupada em saber quem disparou o tiro. Quero é que a violência diminua e que mais nenhuma mãe precise viver essa agonia.

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Os médicos não dão previsão de alta ao Arthur. Meu menino é um guerreiro. Ainda estava no útero e já lutava pela sobrevivência. Observo o meu filho no hospital e fico sonhando, como toda mãe faz: quero que ele tenha a chance de ir para uma faculdade e saia da favela. Sou otimista. Quando vi o rostinho do Arthur, já sabia da ferida que a bala perdida que atravessou nosso caminho tinha deixado em seu corpo. Mesmo assim, respirei fundo e disse: “Meu filho, bem-vindo ao mundo”.

Depoimento a Monica Weinberg

Publicado em VEJA de 19 de julho de 2017, edição nº 2539

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