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Lotou ou ainda cabe mais?

Ondas humanas vindas da África que desembocam na Itália abrem questões sobre movimentos migratórios, identidade nacional e o próprio conceito de país

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 22 jul 2017, 06h00 - Publicado em 22 jul 2017, 06h00

A quem pertence um país e quem tem o direito de morar nele? Com um passado incomparável e camadas históricas extraordinariamente variadas, inclusive em seus momentos de fluxo e refluxo populacional, a Itália já fechou o debate. A lotação está esgotada. Foram mais de 180 000 pessoas, na maioria absoluta vindas da África, no ano passado. Neste ano, podem chegar a 250 000. Até organizações humanitárias dizem que não dá mais para acomodar gente em cidadezinhas minúsculas, vilarejos medievais ou bairros distantes de uma metrópole como Roma.

As ondas humanas criaram situações sem precedentes. As ONGs para as quais sempre cabem muitos mais tornaram-­se colaboradoras dos traficantes que ganham com o comércio de gente, um escândalo ético espantoso. Começaram a fazer o bem e se transformaram em parte integrante de um processo de imensa perversidade, cujos promotores praticam abusos indescritíveis. Muitos portos de partida são controlados pelo Estado Islâmico da Líbia. Embora cruel, o sistema é de uma eficiência impressionante. Até os botes de borracha, cujos passageiros pagam para ser resgatados, a 12 milhas da costa da Líbia, por navios de ONGs, da Marinha italiana ou de outros países europeus, são fabricados especificamente para esse tipo de transporte. Os naufrágios acontecem quando os botes, mesmo guiados por um “patrão” com GPS, perdem o rumo. Nem os drones das ONGs mais ricas conseguem encontrá-los a tempo. Cada passagem custa por volta de 1 500 euros, ou 5 500 reais. O negócio foi calculado em 390 milhões de dólares no ano passado.

O governo italiano, de centro-esquerda, já ameaçou se estranhar com vizinhos da União Europeia e liberar documentos para os africanos — designação genérica, já que não se trata de imigrantes clássicos nem de refugiados de guerra. A Áustria chegou a encenar uma mobilização de tropas caso fossem abertas as fronteiras, ressurgidas depois dos tempos de tranquilidade da Europa com movimentação sem controle.

A questão dos grandes deslocamentos humanos vindos do mundo pobre, encrencado, conflagrado ou simplesmente com menos benefícios sociais, em direção ao mundo rico, já provocou conhecidas reações políticas, das quais a mais estrondosa foi a eleição de Donald Trump. A palavra-chave no fenômeno atual é benefícios. Ao contrário dos imigrantes que vieram para o Novo Mundo, entre os quais tantos de nossos antepassados, com uma malinha, muitos carimbos nos documentos e esperança de emprego, as ondas humanas atuais chegam aos países ricos com abrigo, saúde e educação providos pelo Estado de bem-estar social. Organizações supranacionais, como a própria União Europeia, também têm verbas para dar garantias inimagináveis pelos imigrantes do passado. O problema, como sabemos, é que o dinheiro não aparece magicamente nos cofres dos Estados ou seus avatares. Não existem empregos de baixa qualificação para atender os refugiados atuais, e os qualificados, com formação profissional, são mais fruto do desejo que realidade.

Por causa desse desejo, muitas vezes é feita uma falsa analogia entre os movimentos atuais e a grande massa de fugitivos do nazismo nas décadas de 30 e 40 do século passado. Justamente por disporem de maiores recursos, financeiros, profissionais ou intelectuais, que os ajudaram a se mobilizar para salvar primeiro a independência e depois a vida, os refugiados vindos da Alemanha, Áustria, Checoslováquia e outros países sob domínio nazista tinham em média um alto nível de instrução. No livro Ark of Civilization: Refugee Scholars and Oxford University, os autores, ligados ao legendário centro universitário, relatam uma das mais inesperadas consequências da migração em massa de acadêmicos, na maioria judeus alemães. Os que já tinham conseguido sair da Alemanha durante os anos de perseguições viram-se, com a declaração de guerra da Inglaterra, na condição de cidadãos de uma potência inimiga. Foram enviados a campos de internação na Ilha de Man, que de repente ganhou a maior concentração de professores universitários do mundo. Imediatamente, começaram a fazer a única coisa que sabiam: dar aulas e seminários. Alguns exemplos dos cursos ministrados: filosofia grega — Platão, história da cultura medieval, grupo de estudos de Goethe. No campo dos italianos, o comandante britânico se condoeu da situação em que se encontravam o historiador Arnaldo Momigliano, o economista Piero Sraffa e o filósofo Lorenzo Minio-Paluello. Propôs que se mudassem para o campo dos alemães, onde teriam interlocutores à altura. Momigliano, pioneiro no estudo de historiografia antiga, convenceu os colegas a desistir. Seu imbatível argumento: era melhor continuar sendo professores num campo cheio de garçons italianos que transformar-se em garçons num campo cheio de professores alemães.

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Com todas as suas deliciosas anedotas, as histórias dos refugiados acadêmicos empalidecem diante do esforço coletivo de vários grupos britânicos para tirar de países nazistas 10 000 crianças judias entre 1938 e 1940, a última janela de oportunidade. Os pais inscreviam os filhos numa espécie de loteria. Se ganhavam, mandavam-nos sozinhos. Como as crianças tinham de ser incentivadas a ter coragem de viajar sem os pais e os nazistas controlavam as estações de trem de onde partiriam até a Holanda, era impossível revelar emoções. “Nem uma única pessoa chorou. Ninguém”, relembrou Erika Leiter sobre o dia em que tomou um trem em Viena, aos 14 anos, para ir morar com várias famílias adotivas na Grã-Bretanha. Das 9 354 crianças entre 3 e 17 anos salvas pelo Kindertransport, quatro vieram a ganhar o Prêmio Nobel.

A arca da civilização é complexa, cheia de guinadas, conduzida por forças históricas muitas vezes além de nossa compreensão. Ajudar os desvalidos é um impulso nobre e solidário que ganha outras feições quando vira incentivo ao deslocamento populacional em massa e colaboração com os exploradores de um comércio vil. Proteger o próprio país, com sua identidade nacional, de definições tão fugidias também é um direito inalienável. A solução, pelo menos no momento, é fácil de falar e quase impossível de fazer: fixar as massas em movimento em seus países, dificultando o tráfico e dando incentivos a uma vida melhor. Entre outras coisas, isso implicaria algum tipo de intervenção na Líbia — outro lugar onde o bem, sob a forma da derrubada de Muamar Kadafi, virou o mal do caos descontrolado. Onde estão os líderes europeus que conseguiriam mudar o rumo do barco da história?

* Vilma Gryzinski é colunista de VEJA

Publicado em VEJA de 26 de julho de 2017, edição nº 2540

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