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Instante de igualdade

A primeira legislação comunista deu à mulher os mesmos direitos dos homens, uma revolução dentro da revolução que durou pouco, mas ainda repercute

Por Lizia Bydlowski
Atualizado em 6 out 2017, 06h00 - Publicado em 6 out 2017, 06h00

Mulheres têm direitos iguais aos dos homens, ganham o mesmo salário que eles, desfrutam o mesmo acesso à universidade e a qualquer função no trabalho, podem votar e ser votadas, não cozinham, não fazem mercado e não lavam roupa (há refeitórios e lavanderias comunitários), põem as crianças em creches e escolas de período integral (há vagas para todas), casam-se e divorciam-se sem burocracia, abortam com segurança os filhos que não desejam e exercem voz ativa no governo e nos destinos do país. Parece a sociedade de Vênus, ou a da Terra daqui a muitos séculos? Pois era o que estipulavam as leis na Rússia, nos primórdios da Revolução de 1917. O furacão feminista (com perdão do detestado termo burguês) durou pouquíssimo, mas sacudiu conceitos com uma força que reverbera até hoje. Também provou que, tocada de cima para baixo, a tal liberação da mulher vira fake news rapidinho.

“Na instalação do novo regime, as pautas eram muito semelhantes às do feminismo atual. O problema daquela época também continua igual: mudar a lei não é suficiente para mudar a mentalidade predominante”, avalia o historiador Daniel Aarão Reis, da Universidade Federal Fluminense, autor do artigo da página 92 deste especial. O caldeirão de ideias e pregações pela melhoria das condições das mulheres fervilhava, tanto na Rússia quanto em boa parte da Europa, antes de 1917. Na virada para o século XX, as russas já estudavam em faculdades “de homem”, como de medicina e engenharia. O direito ao voto chegou à Finlândia, então parte do império russo, em 1906. Mas foi nos estatutos da fundação da república soviética que a libertação feminina do jugo de maridos, pais e padres atingiu o ponto de ebulição máxima. O fervor revolucionário trocou o casamento pelo ato de morar junto, facilitou o divórcio e o aborto, tirou a mulher de casa e a empurrou para as fábricas e universidades, sempre tendo a revolução como o sol da sua existência.

É bem verdade que nesse espocar do primeiro foguetório comunista, livrar as mulheres das amarras que as sufocavam tinha pouco a ver com a questão feminina, tal como é vista hoje. Para os bolcheviques, esse avanço fazia parte de um projeto maior, aquele da sociedade inteiramente dedicada à revolução e igualitária em todos os aspectos — a qual seria alcançada com a extinção pura e simples de instituições burguesas carregadas do ranço do poder de uns sobre outros, entre elas a família e o casamento. A visão bolchevique para as mulheres, diz a americana Wendy Goldman no livro Mulher, Estado e Revolução (Editora Boitempo), “era baseada em quatro preceitos: união livre, emancipação através do trabalho assalariado, socialização do trabalho doméstico e definhamento da família”.

Ativismo – Kollontai: a mulher mais poderosa do regime pregava a dissolução da família e o amor livre (Russian State Archive Of Film and Photographic Documents/VEJA)

Mulheres tiveram papel importante na Revolução Russa e ocuparam posições de destaque no novo regime. Um motor da reforma da condição feminina foi Aleksandra Kollontai, filha de aristocratas que veio a se tornar a mulher mais poderosa do primeiro governo soviético e ressonante portavoz da igualdade entre os sexos e do amor livre (que praticou a vida toda, com entusiasmo não menos revolucionário). “O objetivo das proletárias”, escreveu, “é substituir a sociedade de classes antiga e antagônica pelo novo e radiante tempo do trabalho e da solidariedade entre irmãos.” Outra voz potente nessa direção foi a de Nadezhda Krupskaia, a mulher de Lenin, para quem “a emancipação das mulheres trabalhadoras está inseparavelmente ligada ao fortalecimento do poder soviético”.

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A febre revolucionária pró-igualdade de sexos, porém, não sobreviveu à realidade nua e crua. “Não houve uma revolução autêntica dos costumes. Tudo era feito para facilitar o domínio do regime. Quando se julgou que as associações femininas, assim como as de artistas e de outros setores, estavam ameaçando a autoridade do partido, cortaram suas asas”, diz o antropólogo Flavio Gordon. Quanto mais o governo soviético foi endurecendo seu controle sobre a vida da população, mais água fria foi sendo jogada no ideal de uma sociedade de indivíduos independentes, pensantes e com vontade própria. Também contribuiu a reprimida, mas nunca extinta, misoginia dos senhores do poder. O próprio Lenin dos textos veementes em favor do envolvimento feminino na construção do socialismo escrevia os discursos de Krupskaia e, em cartas, fustigava companheiros por agirem e pensarem “como mulher”.

Aos poucos, o conceito de família — entidade essencial nas sociedades que precisam andar na linha — foi sendo restaurado, tanto em atos legais como no discurso revolucionário. A pá de cal veio em 1936, quando Stalin proibiu o aborto — com o apoio da mulher de Lenin, que tinha assento no Soviete Supremo, e de Kollontai, àquela altura bem longe de Moscou, desfrutando a vida confortável de embaixadora na Suécia. Às mulheres soviéticas, que de fato ingressaram maciçamente na força de trabalho e nas universidades — este, sim, um legado permanente —, restou exercer uma jornada dupla ainda mais sacrificada. O que era doce acabou-se. Mas o sabor da igualdade, tão intenso e tão fugaz há 100 anos, este permanece vivo até hoje.

Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2017, edição nº 2551

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