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Floresta barulhenta

Decreto de Temer para a exploração mineral em uma área de reserva na Amazônia provoca uma gritaria — um tanto exagerada — e assusta as populações locais

Por João Pedroso, do Amapá, e Jennifer Ann Thomas
Atualizado em 1 set 2017, 06h00 - Publicado em 1 set 2017, 06h00

O canto da araracanga, também conhecida como arara-vermelha-­pequena, é uma das melodias mais exuberantes da extraordinária trilha sonora natural da Floresta Amazônica. Colorida como uma paleta, a ave — de corpo vermelho e asas amarelas e azuis — tem um sibilo a um só tempo belíssimo e agônico, que se espalha ao longo de quilômetros em meio às árvores colossais. Nas últimas semanas, outro som amazônico, igualmente aflitivo, se fez ouvir não apenas na região — ecoou pelo planeta afora. Era um clamor, ou melhor, uma gritaria de ambientalistas, ativistas e artistas que buscavam, principalmente no megafone das redes sociais, sobrepor-se à voz confusa do governo Temer quando se trata de temas ambientais.

AMEAÇA – Índios da tribo oiampi: nos anos 70, a população esteve perto de ser extinta ao ter contato com os brancos (Egberto Nogueira/Imãfotogaleria/)

Tudo começou na quarta-feira 23, com a publicação de um decreto do presidente extinguindo a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca). A área, delimitada em 1984, na fase terminal da ditadura militar, possui 47 000 quilômetros quadrados e é rica em metais, incluindo ouro. A medida governista pôs em campo uma legião de opositores, capitaneada por celebridades como Gisele Bündchen — a quem Michel Temer já tapeara recentemente ao recuar do recuo de vetar a redução da área preservada da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará. Publicações de Gisele no Instagram e no Facebook sobre o assunto, convocando todos os brasileiros “a dizerem não ao abrandamento da proteção da Amazônia”, chegaram a contabilizar 500 000 curtidas. Juntaram-se a ela nomes de peso internacional como o ator Leonardo DiCaprio, e, no âmbito interno, Ivete Sangalo e Luciano Huck. Os jornais estrangeiros, como o americano The New York Times e o inglês The Guardian, sempre tão interessados no destino da Amazônia, também publicaram textos críticos à medida.

Comoção – Celebridades em um vídeo que viralizou nas redes (//Reprodução)

No afã de combater a decisão, o movimento embarcou na falsa versão de que o Planalto antecipara a extinção da Renca para mineradores, durante evento no Canadá, no início do ano. Na verdade, a intenção do governo de mexer na situação da reserva já havia se tornado pública em 2016. Em meio ao bate-­boca, divulgou-se, também, que todas as reservas ambientais presentes na área da Renca deixariam de existir — outra mentira. A verdade: apenas 21% da área protegida poderá ser minerada. E, mesmo assim, não se trata de um “liberou geral”: as mineradoras terão de atender a diversas demandas ambientais e sociais (como deslocamento de populações, ressarcimentos etc.), a depender de onde se instalarão e do que vão extrair. Como há na região o grande atrativo do ouro — o potencial superaria o de Serra Pelada —, deve prevalecer a exploração subterrânea, que, em geral, é menos danosa do que a chamada “mineração a céu aberto”, mais frequente no caso de ferro, por exemplo. Isso significa que as reservas não deixarão de ser reservas. Só muda, por assim dizer, o nível de sua proteção (confira o mapa abaixo).

Caminhão em estrada que corta reserva ambiental (Egberto Nogueira/Imãfotogaleria/)

Tamanho salseiro teve sua origem na forma açodada como o governo redigiu e publicou o decreto. O documento foi elaborado pelo Ministério de Minas e Energia, sem prévia consulta pública. Diante da celeuma posterior, o ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho (PV-MA), alegou que sua pasta não fora ouvida antes da divulgação da medida. Logo isso se mostrou, no mínimo, uma falha de memória. Em 20 de junho, um parecer técnico do Ministério do Meio Ambiente, preparado para balizar a decisão da Presidência, manifestou-se contrário à extinção da Renca. Entrevistado por VEJA, Sarney Filho se explicou: “Concordo que poderia haver maior discussão. Mas o pessoal do ministério (de Minas e Energia, pilotado por Fernando Coelho Filho, do PSB) não acreditava que a interpretação da sociedade poderia ser tão polêmica. A partir desse momento, fiquei preocupado, porque a sinalização poderia ser de que estava tudo liberado”.

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A balbúrdia provocada pelo decreto original fez com que, na terça-feira 29, Temer o revogasse e redigisse outro, agora em parceria com o Ministério do Meio Ambiente. No novo texto, estava explícita a conservação de terras indígenas e da maior parte das unidades de conservação. Entretanto, persistiam a extinção da Renca e a porta aberta para a possibilidade de exploração dos mesmos 21% da área. No dia seguinte, o juiz federal Rolando Valcir Spanholo, do Distrito Federal, suspendeu o decreto, por inconstitucionalidade. A AGU divulgou que recorreria da decisão. No mesmo dia, o ministro do STF Gilmar Mendes, no papel de relator de uma ação movida pelo PSOL contra a medida, concedeu dez dias para que Temer explicasse sua escolha.

No cenário real do rebuliço produzido no país, VEJA constatou a aflição das populações que residem na área da Renca. Os cerca de 300 moradores da Vila São Francisco, no Amapá, por exemplo, que tiram o sustento da extração de castanhas, temem que grandes obras em regiões próximas possam abalar seu modo de vida, e o temor é justificado. Em 2014, eles tiveram suas casas derrubadas, em decorrência da conclusão da construção da hidrelétrica de Santo Antônio do Jari.

Na tribo oiampi, também visitada pela equipe de VEJA, cujas aldeias se espalham por 6 000 quilômetros quadrados da floresta, o fantasma da exploração mineral desenfreada desperta memórias desesperadoras. Na década de 70, o grupamento indígena, então contando com 10 000 indivíduos, por muito pouco não foi extinto, em razão dos conflitos com garimpeiros e, sobretudo, pelo avanço do sarampo, contraído após o contato com os homens brancos que chegavam à região. A tribo foi reduzida a 150 sobreviventes. Com a proteção da Renca, os oiampis se recuperaram e, hoje, já somam 1 300. “Não queremos ter mineração onde vivemos em paz, onde bebemos água, onde sustentamos filhos e netos. Isso fere Yvy Jarã, a entidade espiritual que cuida de nossas terras”, desabafou, emocionado, Jurara Waiãpi, de 70 anos, um dos chefes da tribo, resumindo o sentimento que se espalha pela reserva.

A possibilidade de extinguir a Renca em favor de demandas do setor mineral começou a ser cogitada em 2015. Foi quando empresas passaram a pedir por essa iniciativa em debates com autoridades sobre um novo marco regulatório da mineração. Oficialmente, o assunto chegou ao Planato em abril deste ano, levado pelo Ministério de Minas e Energia. Para o ambientalista Maurício Voivodic, diretor da WWF Brasil, ONG que se opõe a Temer nessa questão — e que está divulgando um relatório com a existência de 381 novas espécies amazônicas, algumas já ameçadas de extinção, como o boto-vermelho —, “a mineração seria viável e os royalties poderiam contribuir para a conservação; contudo, a expectativa é que aumente a devastação, pelo histórico brasileiro”. Ou seja: a decisão do governo não é o escândalo que a estridência dos protestos sugere. Mas, nesse assunto, o passado do governo o condena. Em meio à gritaria, maior do que o canto deslumbrante da araracanga, o que faltou fazer foi o básico: balancear os interesses econômicos, locais e nacionais, com o respeito pela importância vital da Amazônia para o Brasil e para o mundo — assunto que é tema dos dois artigos exclusivos publicados nas páginas seguintes.

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Flora e fauna ainda mais ricas

DIVERSIDADE – Perereca agora descoberta: menos de 3 centímetros (Philip J. R. Kok/)

Datam do início do século XIX as primeiras expedições científicas à Amazônia. Um dos pioneiros foi o botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), que, ao longo de três anos de viagens pelo Brasil, realizadas entre 1817 e 1820, catalogou espécies e fez coletas no bioma da região. O trabalho, em parceria com outros especialistas, resultou, por exemplo, nos quarenta volumes da obra Flora Brasiliensis, na qual são descritas 20 000 plantas. Passados dois séculos do início da expedição do cientista germânico, sabe-se da existência de 40 000 espécies vegetais e estima-se que haja 2 milhões de tipos de animal na Amazônia. Os números robustos da flora e da fauna da região já davam a impressão de que pouca novidade poderia surgir naquele hábitat. Engano. Um novo estudo da WWF, ONG ambientalista de alcance global que tem se revelado uma das mais atuantes contra o decreto que extingue a Renca, apontou a existência de nada menos do que 381 novas espécies de planta e animal vertebrado.

No relatório, divulgado na quar­ta-feira 30, às vésperas do Dia da Amazônia, comemorado em 5 de setembro, foram catalogados 216 vegetais, 93 peixes, 32 anfíbios, vinte mamíferos, dezenove répteis e uma ave. Segundo a WWF, descobriu-se uma espécie a cada dois dias de trabalho, entre janeiro de 2014 e dezembro de 2015. Entre os achados, há, por exemplo, um novo boto, o Inia araguaiaensis, agora apelidado de boto-ver­melho, cujo nome científico homenageia o Rio Araguaia. Outras descobertas foram o macaco-rabo-de-fo­go e a perereca Pristimantis jamescameroni, que tem menos de 3 centímetros de comprimento, cor laranja e vive na parte venezuelana da floresta. Na Renca, há duas das novas espécies, os peixes Cyphocharax aninha, de 3,9 centímetros, e Hypomasticus lineomaculatus, de 6,3 centímetros, ambos endêmicos do Rio Jari, no Pará. O espantoso: calcula-se que 40% dos peixes e 70% dos insetos que fazem da Amazônia seu hábitat ainda não foram registrados.

Com reportagem de Carla Monteiro

Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2017, edição nº 2546

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