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Em defesa da vítima

Em três meses, 17 ônibus foram parados em São Paulo por causa de abusos denunciados por mulheres. Só certeza de punição pode mudar o comportamento de todos

Por Tatiane Moreira Lima*
Atualizado em 24 nov 2017, 06h00 - Publicado em 24 nov 2017, 06h00

Estamos vivendo tempos difíceis em que somos bombardeados por notícias desanimadoras, em especial sobre violência contra a mulher. Permitam-me, então, compartilhar uma informação. Desde agosto, dezessete ônibus foram parados em São Paulo pelos motoristas no meio de seu percurso habitual. Eles pisaram no freio porque passageiras anunciaram estar sofrendo abuso sexual. Em todos os casos, os suspeitos foram mantidos dentro dos ônibus com as portas fechadas até a chegada da polícia. Os demais passageiros tiveram de descer para a calçada e pegar outro veículo para seguir adiante.

Todas essas ações foram possíveis graças à campanha encabeçada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, feita com o apoio de empresas de transporte público da maior cidade da América Latina e de diversas instituições, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Polícia Militar, a Polícia Civil e as secretarias de Transportes estadual e municipal. O objetivo foi dar visibilidade a esse tipo de violência contra a mulher, que até então era acobertado pelo silêncio. Para se ter uma ideia, até agosto deste ano nem sequer havia estatísticas sobre tal crime nos ônibus. Era como se o problema não existisse. Só quem possuía dados era o sistema de trilhos da cidade de São Paulo, que registrou 246 casos de violência sexual até outubro — muito mais que no ano passado inteiro, quando foram detectados 195.

Uma das preocupações que apareceram enquanto estávamos planejando a campanha referia-se à reação imprevisível dos passageiros. Ao longo de meses, foram treinadas 1 200 pessoas, homens em sua maioria, que trabalham na linha de frente do sistema e recebem denúncias diversas em estações, plataformas e terminais, além de motoristas, cobradores e policiais. Esses profissionais foram chamados a refletir sobre a necessidade de acolher a vítima, sem culpabilizá-la. Na eventualidade de uma mulher procurá-los e pedir ajuda, eles deveriam ouvir sua história, indagar sobre o que gostaria de fazer e encaminhar os envolvidos para a autoridade competente.

Nosso medo era que, preocupados em chegar a tempo ao destino, os passageiros ficassem revoltados quando o ônibus parasse. Podiam até querer voltar-se contra o motorista. Nada disso aconteceu. Ao contrário. Quando motoristas e cobradores atuaram de forma exemplar — detendo o agressor em flagrante delito (sim, qualquer cidadão pode conter alguém que acaba de praticar um crime) —, os passageiros não reclamaram. Os funcionários foram parabenizados pela coragem e pela bravura na defesa dos direitos das mulheres. Não houve nenhuma reclamação pela parada dos coletivos na ouvidoria da Secretaria de Transportes. Em todas as dezessete ocorrências, os passageiros não se recusaram a descer do ônibus.

Diversas mulheres se solidarizaram com as vítimas. Elas as acolheram e sentiram compaixão pela situação de vulnerabilidade delas. Foi essa a atitude que vimos no caso do homem que ejaculou no pescoço de uma passageira em São Paulo, no fim de agosto, exatamente quando nossa campanha tinha acabado de arrancar. A atitude dos homens também foi importante, posto que, em geral, são eles os responsáveis, com o cobrador e o motorista, por deter os agressores e impedir que eles fujam do local.

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O sucesso da campanha é um anacronismo no Brasil. A ideia de que o transporte é público mas o corpo da mulher não é ainda não está enraizada na nossa cultura. Uma pesquisa do Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concluiu que um em cada três brasileiros acha que a mulher que usa roupa curta não pode reclamar de ser estuprada. Para 37% dos entrevistados, somente são violentadas aquelas que não se dão ao respeito. A maior parte das pessoas credita a culpa do estupro à vítima, ao tipo de roupa, ao comportamento ou mesmo a causas externas, como a lotação do espaço. Não faz sentido. Se o abuso tivesse relação com roupas curtas ou com a quantidade de gente no veículo, ele aumentaria no verão ou só aconteceria no horário de pico, o que não é verdade.

Uma barreira cultural foi vencida pela campanha nos transportes de São Paulo. Um dos fatores principais para esse êxito foi a certeza de que a impunidade acabou. O que inibe a infração não é o tamanho da pena, e sim a certeza da punição e de reprovação, social ou penal. Antes, ao presenciarem um abuso, as pessoas se omitiam. Ao agirem assim, elas indiretamente faziam uma escolha: a defesa do abusador. Quando fingiam que não viam nada, elas passavam uma mensagem de que o abusador poderia continuar a perpetrar seu comportamento de predador sexual. Ele não seria incomodado por ninguém. A coletividade fingia que não via, a vítima disfarçava que não sentia e o agressor simulava que não fazia nada.

A conscientização, que aconteceu por meio de cartazes, jornais, redes sociais e televisões que ficam nos vagões, estimulou as mulheres a denunciar. Também incentivou as pessoas envolvidas e que tenham presenciado alguma situação a não se omitir.

Se houve uma mudança para que as pessoas parassem de fumar em locais fechados e para que todos passassem a usar cinto de segurança nos automóveis, por que não também garantir que as mulheres possam transitar com liberdade, sem medo e em segurança, com a roupa que desejarem e sem ser incomodadas?

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Muitos dos números que indicam um aumento da violência contra a mulher são, na realidade, uma constatação de que elas não aceitam mais ficar quietas quando sofrem uma violência. Por isso, esses dados também são motivo de muito orgulho, comemoração e satisfação. Um fenômeno que já existia havia muito tempo, mas era abafado, agora é visível. As mulheres não sofrem mais caladas e as pessoas no entorno estão prontas a ajudar essas mulheres em total situação de vulnerabilidade e sem amparo.

Isso mostra empatia e solidariedade por parte da nossa sociedade. Exatamente por se colocarem no lugar do outro é que muitos abandonaram o ônibus, interromperam seu trajeto, chegaram atrasados em casa ou a seu compromisso. Eles se deram conta de que havia bens maiores que estavam sendo lesados — a liberdade, a segurança e a dignidade de uma mulher.

* Juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo, atuou na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher por cinco anos

Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558

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