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É ruim, mas necessário

A proibição do uso de cobaias em experiências acadêmicas, como propunha uma lei vetada pelo governo paulista, traria prejuízos a toda a sociedade

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 ago 2017, 06h00 - Publicado em 5 ago 2017, 06h00
(VEJA/VEJA)

“Deveríamos nos aventurar no estudo de animais de todo tipo sem desgosto, pois cada um deles e todos nos revelarão algo natural e algo bonito”, escreveu Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), um dos gigantes do pensamento grego, em seu livro História dos Animais (350 a.C.). Considerado pioneiro no uso de cobaias em pesquisas científicas, o pensador dedicou parte de seus esforços à caracterização das diferenças entre os seres estudados nesse verdadeiro tratado zoológico. Séculos depois, o uso de animais ainda se mostra essencial ao progresso das ciências, em especial como modo de realizar testes de medicamentos e vacinas sem pôr em risco vidas humanas. Não há, pelo menos até agora, uma forma segura e financeiramente viável de substituir todas as cobaias — e o homem, claro, é a prioridade das pesquisas científicas.

Apesar de todas essas evidências, talvez movida por argumentos emocionais, ou por puro populismo, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou, em junho, um projeto de lei, de autoria do deputado Feliciano Filho (PSC), que vetava a “utilização de animais em atividades de ensino” em instituições de todo o estado. É uma medida muito desejável, mas ainda inaplicável. Em 26 de julho, pouco mais de um mês depois, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) derrubou a chamada Lei Anticobaia, que, no limite, poderia inviabilizar estudos essenciais para a sociedade.

Emoção X Razão – Experimento com beagles em São Paulo provocou comoção em 2013, apesar de os estudos visarem a combater cânceres (Avener Prado/Folhapress)

O assunto é ruidoso. Na esfera das redes sociais, como no Facebook e no Twitter, a reação de ativistas defensores dos animais foi inflamada. Imaginar o sofrimento de um animal, afinal, é doloroso — mesmo que ele ocorra em favor da saúde de milhões de pessoas. Basta recordar a resposta incendiária em outro episódio que envolveu a questão dos testes em animais, também no Estado de São Paulo. Em outubro de 2013, cerca de 100 ativistas invadiram o Instituto Royal, em São Roque, com o objetivo de libertar 178 cães da raça beagle, em protesto contra o uso deles em pesquisas científicas. No universo virtual, capitaneado pelo Facebook, pouco importou que a entidade estivesse legalmente amparada para a utilização de animais e que o fizesse em estudos para melhorias em tratamentos contra cânceres e no desenvolvimento de antibióticos. O que repercutiu de forma avassaladora foi a imagem dos beagles aprisionados em gaiolas, gerando uma comoção bem real.

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Há países, como a Espanha, que proibiram o uso de primatas em pesquisas (Sam Ogden/SPL/Latinstock)

Diante da tentativa de proibir o uso de cobaias nas universidades paulistas — mesmo que se tratasse de uma vaca viva numa aula de veterinária —, os pesquisadores reagiram praticamente em uníssono. A USP e a Unicamp enviaram documentos, assinados por seus reitores e pelos vice-­reitores das áreas de ciências biológicas e agrárias, manifestando-se contra a manobra e a favor do veto de Alckmin. No caso da Unicamp, dez professores atestaram: “De forma enfática, ressaltamos que o uso ético de animais resulta em formação robusta de profissionais da área biológica e biomédica, sendo vários procedimentos insubstituíveis”.

É verdade. As cobaias são fundamentais, insista-se, para o desenvolvimento de vacinas, por exemplo. Foi assim com as que previnem poliomielite, tifo, difteria, varíola, tétano, entre outras. Por esse motivo, atribui-se a experimentos que envolveram animais o impulso às ciências médicas que permitiu um aumento de trinta anos na expectativa de vida dos americanos no último século.

Isso não quer dizer que os tais experimentos não possam ser feitos de maneira ética. Em 1959, o zoólogo britânico William Russell (1925-2006) elaborou, a partir de um pedido da Federação de Universidades para o Bem-­Estar Animal, o conceito dos 3R’s, referência nessa discussão: redução, refinamento e substituição (em inglês, replacement). Como “redução”, entende-se o aprimoramento dos testes que visam a diminuir a quantidade de exemplares necessários para os estudos. “Refinamento”, nesse contexto, quer dizer recorrer a melhores métodos, como analgésicos, para minimizar o sofrimento. Por fim, prevê-se o desenvolvimento de técnicas que busquem substituir os testes por modelos executados em computador ou em reproduções artificiais de organismos. No centro desse debate estão, por exemplo, nossos primos primatas. Por serem fisicamente parecidos conosco, bonobos, chimpanzés e similares foram, durante longo tempo, tidos como ideais para as experiências. Novos estudos, no entanto, concluíram que muitas vezes podem ser obtidos melhores resultados com espécies que apresentem menores níveis de senciência, como os roedores. Por isso há países, como a Espanha, que já proibiram o uso de primatas em pesquisas. Nos Estados Unidos, a organização Great Ape Project (Projeto dos Grandes Primatas) vem propondo o mesmo. “Só que não podemos estacionar os estudos enquanto as alternativas não se mostrarem viáveis”, ressalta o veterinário José Antonio Visintin, diretor do respectivo departamento da USP. “Na formação dos alunos, nada substituirá a sensação de ter contato direto com os animais. Sem isso, como eles serão treinados para salvá-los, depois, na prática da profissão?”

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Com reportagem de Carla Monteiro


Eles sentem como nós?

NATUREZA - O elefante e a menina: a mesma noção de empatia (Shutterstock/VEJA)

“O peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, também possuem esses substratos.” A categórica conclusão, que consta da Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal, firmada em 7 de julho de 2012, tem servido como um dos principais alicerces das correntes que defendem o fim do uso de cobaias nos laboratórios. O documento, apresentado no final de um evento realizado na Universidade de Cambridge, na  Inglaterra, discute, por exemplo, se os animais teriam noção dos sofrimentos infligidos a eles durante os experimentos científicos. Na ocasião de sua divulgação, a Declaração de Cambridge foi assinada por 25 cientistas de peso, de áreas diversas, incluindo o físico inglês Stephen Hawking. Disse a VEJA, na semana passada, o neurocientista canadense Philip Low, que coordenou o trabalho: “É imperativo caminhar para o fim dos testes com animais, visto que, com isso, causamos dor em seres sencientes”.

Low integra uma vertente de pesquisadores afinados com a ideia de que, sendo sensíveis, os animais também expressariam empatia e compaixão, como o homem. “Os mamíferos têm plena noção empática, pois entendem quais são as necessidades do outro, além das próprias”, garantiu a VEJA, em entrevista recente, o primatólogo holandês Frans de Waal, autor do best-seller A Era da Empatia. Um estudo realizado por Waal provou como a consciência se manifesta em animais. Em um de seus experimentos, o cientista posicionou uma mesa com alimentos diante de dois elefantes. Para puxar a comida, eles tinham de trabalhar em conjunto, acionando cordas. Em todas as tentativas, a dupla atuou solidariamente. Outra pesquisa, da Universidade Emory, nos Estados Unidos, revelou como roedores se consolam em momentos estressantes. No Brasil, em 2014, o III Congresso de Bioética e Bem-Estar Animal, em Curitiba, corroborou as conclusões de Cambridge. Como se vê, o equilíbrio deve, sempre, pautar o debate — e cabe ao animal humano zelar por ele.

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Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2017, edição nº 2542

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