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Artigo de imitação

Em matéria de democracia, como em tantas outras coisas que separam as nações desenvolvidas das subdesenvolvidas, o Brasil ficou só na foto

Por J.R. Guzzo
Atualizado em 5 ago 2017, 06h00 - Publicado em 5 ago 2017, 06h00

A DEMOCRACIA NO BRASIL lembra uma dessas fotos antigas de reis africanos que de vez em quando ilustram livros de história. Muitos deles, ouvindo oficiais do Império Britânico ou outros figurões europeus da época colonial que lhes davam lições de civilização, progresso e bons modos, parecem encantados. Acreditavam, como lhes era dito, que a Europa e as coisas europeias representavam o máximo a ser sonhado por um ser humano — e em geral chegavam à conclusão de que teriam muito a ganhar transformando a si próprios em soberanos civilizados o mais depressa possível. O meio prático de fazer isso, em sua maneira de ver as coisas, era imitar os trajes, jeitos e enfeites dos peixes graúdos que lhes falavam das maravilhas da rainha Vitória ou do imperador Napoleão III. Que atalho melhor para atingir esse estágio superior na evolução das sociedades humanas? O resultado aparece nas fotografias. As mais clássicas mostram uns negros magros, ou gordíssimos, com uma cartola de segunda mão na cabeça, ou um desses capacetes de caçador inglês, calças rasgadas aqui e ali, pés descalços — ou calçados com uma bota só, velha e sem graxa. Uns aparecem com casacas usadas, uma fileira de medalhas no peito e três ou quatro relógios saindo dos bolsos. Outros fazem questão de exibir-se para a câmera segurando um guarda-chuva aberto. É triste. Imaginavam-se nobres, modernos e iguais aos seus pares europeus. Eram apenas uns pobres coitados.

O problema é que nada tinha mudado na vida real. Junto com as novas roupas e os acessórios, as fotos mostram que os retratados conservavam, como sempre, seus colares com ossos, pulseiras de metal e argolas na orelha ou no nariz — e a história iria provar com fatos, em seguida, quanto foi inútil todo esse esforço de imitação. Das nações mais evoluídas, suas majestades copiavam os trajes. Não aprenderam as virtudes. Continuaram desgraçando a si e a seu país enquanto eram roubados até o último papagaio pelos que vieram ensiná-los a ter valores cristãos, avançados e democráticos.

Por outras vias, acontece no Brasil mais ou menos a mesma coisa. Na fotografia aparece uma democracia de Primeiro Mundo — mas a realidade do dia a dia mostra pouco mais que uma cópia barata e malsucedida do artigo legítimo. Temos uma Constituição, eleições a cada dois anos e uma Câmara de Deputados. Temos, imaginem só, um Senado e até um presidente do Senado. Temos um Supremo Tribunal Federal e até uma presidenta do Supremo Tribunal Federal; seus juízes se chamam ministros, usam togas pretas como os reis africanos usavam cartolas, e escrevem (às vezes até uma frase inteira) em latim. Temos partidos políticos. Temos procuradores gerais, parciais, federais, estaduais, municipais, especializados em acidentes do trabalho, patrimônio histórico, meio ambiente, infância, urbanismo e praticamente todas as demais áreas da atividade humana. Temos uma Justiça Eleitoral. Temos centenas de direitos legais, inclusive ao lazer, à moradia e ao amparo, se formos desamparados. Não falta nada — a não ser a democracia.

Pode passar pela cabeça de alguém que exista democracia num país com 60 000 homicídios por ano?

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Em matéria de democracia, como em tantas outras coisas que separam as nações desenvolvidas das subdesenvolvidas, o Brasil ficou só na foto. Há uma Constituição, é claro, pois todo regime democrático precisa de uma — mas ela tem 250 artigos, que se metem a regular tudo, até a licença-paternidade, sem entregar realmente nada, e já foi modificada mais de 100 vezes em menos de trinta anos. As eleições são subordinadas a todo tipo de patifaria, a começar pelo voto obrigatório, seguido do horário eleitoral compulsório no rádio e na televisão e de deformações propositais que entopem a Câmara dos Deputados com políticos das regiões que têm menor número de eleitores. Os resultados são um monumento à demagogia, à corrupção e à estupidez. Dos quatro presidentes eleitos após a volta das eleições diretas, em 1989, dois foram depostos por impeachment e um está condenado a nove anos e meio de cadeia. Dos 513 deputados e 81 senadores, cerca de 40% respondem a algum tipo de procedimento penal, a maioria por corrupção — fora das penitenciárias, é a maior concentração de criminosos em potencial por metro quadrado que existe no território nacional. Na última campanha presidencial, a candidata Dilma Rousseff gastou 300 milhões de reais, boa parte fornecidos pelos maiores criminosos confessos do Brasil. O eleitorado, em grande parcela, é ignorante, desinformado e desinteressado pelos seus direitos. Temos uma aberração, a Justiça Eleitoral, que existe para dar ao país eleições exemplares — mas permite a produção dos políticos mais ladrões do mundo.

O Supremo Tribunal Federal, que na teoria tem a função de servir como o nível máximo da Justiça brasileira, é uma contrafação da corte suprema dos países desenvolvidos. Seu último feito, possivelmente sem similar em nenhuma outra nação, foi aprovar o perdão perpétuo para o autor confesso de mais de 200 crimes, dono de um patrimônio de bilhões de dólares, atendendo a um pedido até hoje inexplicável do procurador-geral da República — que, também na teoria, é encarregado justamente de pedir a punição dos criminosos. Seus juízes decidem tudo, do destino dos presidentes ao furto de codornas, e escrevem sentenças em português incompreensível. Temos 35 partidos políticos, que se reproduzem como ratos; alguns não têm um único deputado ou senador no Congresso. Essa monstruosidade não tem nada a ver com liberdade política. Quase todos os partidos brasileiros são criados apenas para meter a mão nas verbas de um “fundo partidário”, que já anda perto de 1 bilhão de reais por ano, tirados dos impostos pagos pelos contribuintes e distribuídos aos políticos. Recebem uma cota de tempo no horário eleitoral obrigatório, que põem à venda nos anos em que há eleição; também cobram para aceitar a inscrição de candidatos. Até outro dia, com o apoio em massa dos partidos de “esquerda”, o Brasil era talvez o único país onde se defendia um imposto, o imposto sindical, como se fosse um direito do cidadão — da mesma maneira como se transforma o voto, que é um direito, em obrigação legal.

Os direitos dos cidadãos, na verdade, talvez representem a área mais notável das semelhanças entre a democracia brasileira e os reis africanos que aparecem nas fotos-símbolo do colonialismo.

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Nunca houve tantos direitos escritos nas leis; nunca o poder público foi tão incompetente para mantê-los. Não consegue, para desgraça geral, garantir nem o mais importante de todos eles — o direito à vida. Com 60 000 assassinatos por ano, o Brasil é hoje um dos países onde a vida humana tem o menor valor. Há uma recusa sistemática em combater o crime por parte de nove entre dez políticos com algum peso; o maior pavor deles é ser considerados, por causa disso, como gente da “direita”. Acham melhor, como as classes intelectuais, os comunicadores e os bispos, falar mal da polícia. Pode passar pela cabeça de alguém que exista democracia num país que tem 60 000 homicídios por ano?

A democracia, até agora, é uma experiência que não deu certo por aqui.

* J.R. Guzzo é colunista de VEJA

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Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2017, edição nº 2542

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