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Admirável mundo velho

A nova temporada de 'Stranger Things' prova que não há truque mais infalível do que proporcionar que os adultos voltem a ser crianças numa redoma nostálgica

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 27 out 2017, 06h00 - Publicado em 27 out 2017, 06h00

O ANO DE 1984 transcorria com fidelidade exemplar aos livros de história no lugarejo fictício de Hawkins, no Meio-Oeste americano. O presidente Ronald Reagan singrava sua bem-sucedida campanha à reeleição. Com a Guerra Fria em curso, os americanos ainda se arrepiavam diante da possibilidade de um conflito nuclear contra os soviéticos. Para quebrar a tensão no ar, havia o colorido peculiar da cultura pop dos anos 80: amava-se o filme Ghostbusters (no Brasil, Caça-­Fantasmas) e ouvia-se a new wave grudenta do Devo e do Oingo Boingo. Os adoráveis protagonistas infantis da série Stranger Things — cuja segunda temporada acaba de ser lançada na Netflix — viviam tudo isso com a sofreguidão típica do período. Só que a década de 80, na ótica deles, extrapolava de longe a realidade concreta: suas aventuras avançavam para o terreno dos sonhos e, sobretudo, dos pesadelos do imaginário do período — tendo por lastro o universo fantástico de Steven Spielberg ou os filmes de horror de seu colega John Carpenter.

Se a primeira temporada de Stranger Things já se esmerava nessa irresistível mistura de nostalgia e viço inovador, seus criadores, os irmãos Matt e Ross Duffer, redobram a aposta na nova leva de capítulos. A realidade em Hawkins é cada vez mais opressiva. A chegada ao pedaço de um metaleiro violento e aparentemente racista aumenta o mal-estar social. E o laboratório do governo que realiza experiências inomináveis na cidadezinha continua a atuar com a mesma desenvoltura cínica, afetando até a lavoura de abóboras para o Halloween. A menina Eleven (Millie Bob­by ­Brown) vive emparedada entre as dores do crescimento de alguém com superpoderes e as ameaças que emanam de uma dimensão paralela habitada por monstros feitos de ectoplasma repulsivo. Mas é o retorno ao lar de Will (Noah Schnapp), o miúdo garoto com cabelo tigela que passou quase toda a primeira temporada desaparecido, que vem catalisar a nova temporada: enquanto ele tenta manter um pé no mundo real, o outro é sempre puxado para a tenebrosa dimensão alternativa.

Contar mais que isso é, decerto, estragar a surpresa do gracioso caleidoscópio de reviravoltas de Stranger Things. É melhor limitar-­se à essência do negócio: os irmãos Duffer mais uma vez exploram com sagacidade a recriação manipulativa do passado. Os anos 80 que se veem na série são um retrato impecável da época. Ao mesmo tempo, porém, são uma deturpação calculada e deliciosa: uma projeção romântica de um tempo do qual muitos tigrões hoje se lembram com saudade não só pelo que a década foi de fato, mas por seu caldo de referências. A presença no elenco da estridente Winona Ryder, como a mãe do garoto Will, resume a confusão singela entre realidade e ficção. São os anos 80 vistos não em sua lentidão analógica inevitável, mas sim com o ritmo dos videogames e da vida de hoje — o que reforça, claro, o apelo para as novas gerações.

E aqui se chega à razão maior do sucesso de Stranger Things: a série acena com um mundo em que a imaginação infantil tem licença para se libertar. Não que qualquer licença fosse necessária para as crianças curtirem os devaneios de certa fase do desenvolvimento: são os adultos que ganham autorização para embarcar na fantasia, e de modo esperto o suficiente para não acharem que regrediram em sua idade mental. Enquanto a temporada durar, todos podem ser estranhamente felizes.

Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2017, edição nº 2554

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