O prazer da descoberta das bancas digitais
O iba, a primeira loja on-line a vender livros, jornais e revistas, é porta de entrada de um belo momento — o da convivência saudável e duradoura do eletrônico com o impresso
Iba, ou ibá, em língua tupi-guarani, significa fruto, fruta ou frutífera – iba, em letras minúsculas, é o nome da primeira loja on-line brasileira a vender, em um mesmo espaço, livros, jornais e revistas. O portal (www.iba.com.br) será lançado na próxima terça-feira, 6 de março. A árvore inaugural é frondosa: 6 000 livros eletrônicos de 170 editoras, dezessete dos mais reputados jornais do país e 25 revistas digitais. Os conteúdos baixados poderão ser lidos em tablets – tanto no iPad como nos modelos alimentados pelo sistema operacional Android – e em PCs. Versões para Mac surgirão no segundo semestre. O iba é uma empresa da Abril Mídia, da qual faz parte a Editora Abril, que publica VEJA. “É uma banca digital completa, fácil de usar, com acesso a todas as plataformas”, diz Ricardo Garrido, diretor de operações do iba. “Cumpre uma de nossas missões, a de oferecer variedade de conteúdo e a melhor experiência de leitura no meio digital.”
Já existem outros bem-sucedidos negócios de venda de publicações eletrônicas no Brasil, como a Gato Sabido (mais de 7 000 títulos) e a Saraiva (6 000) – mas a oferta é restrita a livros. O iba é pioneiro ao negociar revistas e jornais e lidar com toda a cadeia comercial. Do ponto de vista dos leitores, oferece, além da facilidade de reunir tudo em uma única página, de modo amigável, a possibilidade de comprar a assinatura dos periódicos (inclusive os impressos) e um serviço de atendimento por telefone com sessenta pessoas para eventuais problemas. Do ponto de vista dos editores, permite acesso a todo o cadastro do comprador, facilitando futuros contatos. Nesse aspecto, é uma saída para as amarras da Apple. Em seus serviços de venda de publicações, a empresa criada por Steve Jobs cobra uma comissão de 30% dos editores – o iba também cobrará, em proporções diferentes para cada tipo de produto -, mas fica com os dados da transação. O iba, ao contrário, abrirá a carteira de informações dos assinantes de jornais e revistas aos editores. Jobs teve homéricas brigas com executivos da Time Warner, quando lançou o iPad, porque exigiu guardar o e-mail, o telefone e o número do cartão de crédito – e as assinaturas, no final das contas, ficam com a Apple, e não com quem as oferece. O iba rompe essa relação, insatisfatória.
A ideia do iba surgiu em decorrência de um duplo movimento: o da expansão do parque de tablets no Brasil e o da expectativa de melhora da qualidade e alcance da banda larga. Há no país, hoje, 600 000 tablets – dentro de cinco anos, serão 9 milhões (por enquanto, 95% deles são iPads). A banda larga – embora cara e lenta – tem vasto caminho de crescimento. Hoje, um brasileiro leva pelo menos três horas para baixar um filme com qualidade de DVD – nos Estados Unidos, são necessários menos de quarenta minutos. Por aqui, o custo de 1 megabit por segundo é de 47 dólares – contra 15 dólares nos Estados Unidos. Mas não será sempre assim, por exigência dos consumidores. Esse cenário favorável permitiu o pioneirismo do iba e atrai a Amazon. A empresa americana de Jeff Bezos, criadora do Kindle, chega ao Brasil no início do segundo semestre. Antes, contudo, terá de superar alguns obstáculos. O principal será vencer a queda de braço com as editoras, insatisfeitas com os descontos do preço de capa dos livros, de até 70% nos Estados Unidos. No caso do iba, em vez da imposição, valerão o bom-senso de respeitar os valores indicados pelas editoras e, naturalmente, o cuidado de vender publicações a preços de mercado. Ganham, portanto, as duas pontas – a de quem compra, em primeiro lugar, e a de quem vende.
Grandes iniciativas eletrônicas como essa do iba fazem sempre soar as trombetas do apocalipse, prevendo o fim do papel – ocorrência espetacular, caso fosse verdadeira. Convém ir com cautela e prestar atenção ao fascinante momento atual, o da saudável convivência do eletrônico com o analógico. “O digital e o físico ainda vão conviver por um bom tempo”, diz Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, do Rio. “Mas ambos vão se transformar rapidamente – o digital por sua própria natureza e o físico por causa da progressiva mudança de hábitos de consumo provocada pelo digital.” Em uma magnífica e hoje clássica palestra proferida em 2003 na Biblioteca de Alexandria, no Egito, Umberto Eco fez uma defesa da coexistência desses dois mundos ao lembrar dos três tipos de memória humana – a orgânica (“feita de carne e de sangue, administrada pelo nosso cérebro”), a vegetal (“representada pelos primeiros papiros e, depois, pelos livros”) e a mineral (“a de milênios atrás, em pedaços de argila e obeliscos, e a atual, eletrônica, à base de silício”). As três, diz Eco, hão de coexistir. Até quando, não sabemos, mas a travessia é longa.
Um olhar histórico ajuda a entender o motivo dessa permanência. Depois da invenção dos tipos móveis de Gutenberg, no século XV, a publicação de manuscritos aumentou e prosseguiu ainda durante três séculos. A televisão, lembremos, não matou o cinema. A popularização do computador nos anos 80 aumentou drasticamente o consumo de papel, por meio de impressoras cada vez mais rápidas. Diz Robert Darnton, diretor da Biblioteca da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e um dos mais respeitados pesquisadores da informação eletrônica: “Os livros digitais ganham importância, já representam 15% do mercado editorial, mas os livros impressos não perdem espaço. O papel e o eletrônico se complementam. Não podemos imaginar o avanço do digital como algo afeito a mudar completamente nossa experiência cultural”. De fato, não é assim – e por isso as lojas on-line, aptas também a vender impressos, unem o melhor dos dois mundos.
Mundos que se aproximam, mais do que se afastam. Na semana passada, Hollywood concedeu o Oscar de melhor curta-metragem de animação a The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore (Os Fantásticos Livros Voadores do Sr. Morris Lessmore, trocadilho com um nome próprio, algo como “Maisé Menosmais”). O filme é uma homenagem silenciosa – como manda o figurino em tempos de O Artista – ao livro impresso. Começa com um furacão que arranca as palavras das páginas, metáfora da maré digital. Mas, em um movimento irônico, logo depois de ser lançado como filme, fez sucesso como livro digital para iPad, o mais benfeito – e mais vendido – até agora. E a história melancólica do homem triste com páginas em branco de um velho modelo fez sucesso na mais jovem das invenções, o tablet. É assim o casamento, eterno enquanto dure, do impresso com o digital.