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HRA, o formato digital que devolve à musica sua pureza original

As tecnologias digitais reinventaram a indústria fonográfica. Mas os bons ouvidos sabem que a qualidade da música piorou quando o vinil virou CD e, depois, MP3. Um novo padrão, o HRA, é um extraordinário passo de volta à fidelidade da gravação em estúdio

Por Jennifer Ann Thomas e Sérgio Martins
Atualizado em 10 dez 2018, 09h52 - Publicado em 23 ago 2014, 01h00

A música sofreu com a digitalização. E não somente pela pirataria, que estrangulou as gravadoras e reinventou o mercado fonográfico. As inovações representaram, sim, uma extraordinária melhora na distribuição de discos, agora baixados em minutos pelo iTunes e ouvidos em qualquer lugar por iPods. No entanto, houve substancial perda de qualidade sonora quando se passou do vinil para o CD e, posteriormente, para o hoje onipresente MP3.

O decréscimo pode ser medido: nos vinis, as canções alcançam extremos de frequências sonoras quatro vezes maiores do que no MP3. Ouve-se, nas bolachas negras, a respiração do cantor enquanto ele espera o solo de guitarra – já no MP3, as potentes batidas de um baterista perdem relevo, como se toda a gravação estivesse atrelada a uma mesma planície, sem picos. Os bons ouvidos, é natural, se sentiram prejudicados. A exaltação de uma tecnologia de 1894, o vinil, em detrimento de uma de 1995, o MP3, sempre soou como tolo saudosismo. Não é. Na música, o passado vence. Essa discussão ganha amplitude, agora, com um novo padrão de gravação, conhecido por duas nomenclaturas, HRA (áudio em alta resolução, na sigla em inglês, a mais usada) ou HDA (áudio em alta definição), capaz de superar a qualidade de um vinil.

Os arquivos de MP3 surgiram nos anos 90 – e viraram o principal meio de ouvir música nos 2000, com o iTunes e o iPod – como a solução para possibilitar o rápido download de músicas pela internet e também armazenar dezenas de milhares de faixas em tocadores que chegam a ter o tamanho de uma caixa de fósforos. Um disco inteiro em MP3 ocupa apenas 44 megabytes e é baixado em menos de seis minutos por uma conexão on-line mediana, de velocidade de 1 megabit por segundo (o plano regular de internet que se tem hoje no Brasil). A busca de leveza do arquivo, contudo, impõe danos.

Programas que convertem CDs, ou mesmo diretamente o disco master (o primeiro que sai do estúdio), em MP3 identificam e eliminam frequências sonoras extremas da música. Na compressão, o MP3 retira a intensidade dos sons fortes e remove nuances. Além disso, impede que sons distintos sejam transmitidos ao mesmo tempo, separando-os por espaços de 200 milissegundos. Na prática, em um trecho com o barulho de um contrabaixo são descartados sons como as batidas dos dedos do guitarrista no corpo da guitarra. Diz o produtor Zeca Leme, do estúdio BTG, que já gravou a voz de contratenor de Ney Matogrosso: “Com a digitalização passamos a ouvir música de péssima qualidade. Como as pessoas escutam no trânsito, com alguém buzinando ao lado, ou como distração no trabalho, não dão bola, mas, com o equipamento certo, se parar para ouvir com atenção, qualquer leigo vai notar a diferença entre um MP3, um vinil e um arquivo em alta qualidade”.

O som em alta definição é tecnicamente possível de ser captado, mesmo com tecnologias comerciais, há mais de vinte anos. O processo de gravação consiste em registrar na íntegra o master de estúdio, sem se preocupar com o tamanho final do arquivo, que pode chegar a 2 gigabytes. O tamanho era o impedimento para a popularização: na era da internet discada, demoraria quase quarenta horas para baixar um disco, ou quase quatro horas para cada música. Mesmo na velocidade baixa da rede do fim dos anos 90, o mesmo CD em MP3 demorava menos de duas horas. O que mudou? Seguindo a infalível Lei de Moore, segundo a qual a capacidade de processamento deve dobrar, sem aumento de custo, a cada dezoito meses, a tecnologia avançou a passos largos. Hoje, é o download do disco em alta qualidade que leva duas horas, enquanto a versão em MP3 consome cerca de seis minutos. Ao gravar o arquivo em alta qualidade, escolhe-se o formato do áudio, e existe mais de uma dezena de opções que atuam como evoluções do MP3. O mais popular é o Flac, criado em 2001 por uma fundação sem fins lucrativos e cuja última versão, a mais estável, saiu em 2013. Essa de 2013 serviu, pelo primor do resultado, de ignição para o que pode ser uma nova revolução na indústria fonográfica.

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Um Flac mediano consegue preservar 70% do som original, o gravado em estúdio, o que equivale a um vinil da melhor categoria. Já um top de linha chega a 99%. Do que se trata o 1% restante? “Ainda falta captar os efeitos da reverberação da música em um ambiente em três dimensões, o que faz com que o som de cada instrumento chegue de forma distinta aos nossos ouvidos”, diz o produtor e compositor americano David Chesky, pioneiro na tecnologia de gravação em alta qualidade com sua loja on-line HDTracks e a gravadora Chesky Records, pela qual fez discos de artistas do calibre do guitarrista John Pizzarelli. Ele trabalha agora em mais uma inovação, capaz de captar, de forma inédita, o modo como o som se espalha por uma casa de shows, ou um estúdio. Para tanto, saiu do tradicional ambiente de estúdio, passou a gravar em amplos teatros e criou, em parceria com a Universidade de Princeton, um boneco mecanizado, o B&K 4100, dotado de microfones especiais localizados onde seriam os ouvidos. Ele consegue simular com precisão a maneira pela qual o ouvido humano capta as variantes sonoras de um show. Promete Chesky: “Está em estudo ainda, mas acredito que conseguirei lançar um novo padrão de música em cinco anos. Aí, quem fechar os olhos e ouvir nessa qualidade futurista não conseguirá distinguir a reprodução de uma apresentação ao vivo”.

O único fator que ainda pode ser visto como impedimento para que Flacs e arquivos similares substituam de vez o MP3 é o preço. Para ouvir o som de primeira, não basta comprar o disco digital nesse padrão. É necessária uma série de aparelhos capazes de reproduzir as faixas com a qualidade da gra­vação. Para ouvir em ca­sa: computador com internet de velocidade adequada, conversor digital-­analógi­co, ­pré-amplificador (que re­fina o áudio antes de ele ser reproduzido, impedindo distorções), am­plifica­dor e caixas de som de última geração. Todo esse equipamento não sai por menos de 5 000 dólares. Alguns se empolgam mais, e não é tão raro ver quem investe acima de 100 000 dólares. “Gastei o valor de um bom carro esportivo em todo o meu aparato”, afirma o audiófilo paulistano André Borten, engenheiro elétrico, cuja coleção de discos inclui quase 900 gigabytes de música em alta definição. As caixas de som que estão na sala da casa de Borten, por exemplo, são da marca Raidho, que tem modelos que custam até 50 000 dólares. Para ouvir na rua, porém, é preciso bem menos. “Com 700 dólares, consegue-se comprar um bom fone de ouvido e um player adequado”, calcula Chesky.

O aparelho portátil não pode ser um iPod tradicional. Há dispositivos específicos, dotados de múltiplos processadores potentes para não engasgar na hora de reproduzir os arquivos pesados. A exemplo do Pono, uma espécie de iPod para música de alta qualidade, criado pelo músico canadense Neil Young, lançado neste ano, e que sai por 400 dólares. A empresa taiwanesa HTC fabricou os primeiros smart­phones capazes de reproduzir ade­quadamente arquivos em Flac, e a concorrência correu atrás logo em seguida. Especula-se que o próximo iPhone também será desenhado assim. “Com isso podemos preservar trabalhos originais de artistas ao longo das décadas”, disse Young, celebrando os novíssimos formatos.

Além de aprimorar gravações de artistas contemporâneos, essa nova evolução fonográfica permite que se preservem, em formato digital, os discos master gravados há décadas. O álbum Elis, de 1972, clássico da carreira da cantora gaúcha Elis Regina, morta em 1982, é um dos que passam por esse processo. Lançado inicialmente em vinil, o disco foi vertido para CD e depois acabou sendo compartilhado em arquivos de MP3 criados por fãs. “Só que com a digitalização o som ficou sem vida, achatado”, opina o produtor João Marcello Bôscoli, filho de Elis. Há três meses, ele iniciou um processo de remasterização da obra para transformá-la em Flac, o que recuperará muito da fidelidade do que aconteceu no estúdio no longínquo ano de 1972. “Dá até para escutar a respiração dela”, resume Bôscoli, sobre o resultado.

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Os apreciadores de música muitas vezes usam termos quase esotéricos para definir a qualidade do som, como “sem vida”, “quente”, “sem alma”. Atribui-se esse linguajar à dificuldade de definir por que sentimos tamanha diferença entre o som de um CD e o de um vinil. O CD é gravado em frequências de som entre 20 Hz e 20 000 Hz, registrado nos limites de captação do ouvido humano. O vinil, assim como o Flac, vai muito além disso, e somos incapazes de perceber todas as variações só de ouvido. “Esse som que às vezes ultrapassa a capacidade de identificação mesmo de um ouvido absoluto é que tratamos, de maneira imprecisa, como a alma da música”, afirma o produtor americano Chesky. O novo formato pretende alcançá-la.

https://www.youtube.com/watch?v=sOJGalQWOx4

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