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Quando tratar menos é melhor

Os pacientes com tumores ainda muito iniciais e pouco risco de agressividade convivem com uma crescente (e ruidosa) tendência: a redução do volume de terapias em casos específicos. É o começo de uma nova era da oncologia, desafio para médicos e pacientes

Por Natalia Cuminale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 Maio 2016, 16h27 - Publicado em 22 jan 2016, 20h54

Qualquer proliferação celular anárquica, incontrolável e incessante que invade os tecidos, com capacidade de gerar metástases em várias partes do corpo e que tende a reaparecer após tentativa de retirada cirúrgica ou a levar à morte se não for adequadamente tratada.” Tecnicamente, a definição de câncer como aparece na edição on-line do Houaiss é irretocável e não difere muito de outras explicações congêneres, em versões digitais ou impressas. Há anarquia, descontrole e expansão silenciosa numa orquestra orgânica que muitas vezes parece ter saído da paleta dissonante de Pierre Boulez. Os casos de recidiva são numerosos, e o drama da aproximação do fim, a luta inglória pela vida, um fantasma familiar incontornável – apesar de a sobrevida não parar de crescer. E, no entanto, para ficar no didatismo da acepção do dicionário, há alguma imprecisão na frase final colada a uma conjunção condicional, “se não for adequadamente tratada”. A moderna oncologia abriu espaço para uma novíssima conduta médica que se espalha como metástase benigna: a redução dos tratamentos e, em alguns casos, até a decisão de simplesmente não tratar um tumor, por desnecessário.

É postura indelevelmente colada a cânceres em fases extremamente iniciais ou lesões que ainda não significam a doença com todo o seu pesado estigma. Representa uma reviravolta na medicina. Quebra uma regra prevalente desde os primórdios, a de extirpar todo e qualquer sinal de câncer no organismo, sobretudo quando ainda ele não se tornou ameaçador, na tentativa de zerar o risco de morte. “Doenças extremas requerem tratamentos extremos”, escreveu o grego Hipócrates, no século V a.C., no prólogo de uma evolução que nunca cessou. Cortemos para os dias atuais: proliferam aparelhos para rastrear tumores ainda microscópicos, de modo a eliminá-los na gênese ou submetê-los a doses aniquiladoras de medicamentos antes que o grande medo se instale. O arsenal de drogas, eficientíssimo, associado a investigações minuciosas, inaugurou uma realidade ancorada num paradoxo: quanto mais precoce é o diagnóstico, maiores são as chances de o tratamento ser excessivo. Diz o mastologista Antonio Frasson, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e professor da PUC do Rio Grande do Sul: “Muitas mulheres foram curadas com os avanços tecnológicos nos últimos anos, mas outras tantas receberam tratamentos agressivos sem necessidade”.

A equação é difícil. Quando, enfim, dizer não a um tratamento? Recomenda-se, em busca da resposta, compreender a história recente dos cuidados com o câncer de mama, um dos mais incidentes entre as mulheres. Há 1,7 milhão de novos casos a cada ano, em todo o mundo. No Brasil, 58  000. Um a cada quatro cânceres femininos é de mama. Em uma modalidade específica, sempre se supôs haver zelo exagerado. No carcinoma in situ, as células anormais ainda estão confinadas aos ductos mamários, os canais com a função de drenar o leite materno. Esse tipo de lesão passou a ser detectado na década de 80, com a implantação do rastreamento com a mamografia. Nos primeiros anos, 3% dos diagnósticos de tumor de mama eram desse tipo. Nos dias atuais, com o refinamento e a antecipação dos exames, o índice saltou para 25%. Até muito pouco tempo atrás, as mulheres diagnosticadas com o in situ eram, sem exceção, tratadas com cirurgia, radioterapia (feixes de radiação) e hormonoterapia (o bloqueio de hormônios femininos que estimulam o crescimento tumoral). O objetivo maior era eliminar células nocivas que pudessem escapar da incisão cirúrgica na região doente. Mas o grande número de diagnósticos sugeriu que apenas 30% dos casos culminavam em tumor agressivo. E não todos eles, como se pensava. O restante apresenta um comportamento lento e sem malignidade. Ele regride e até desaparece. Quando cresce, isso se dá tão lentamente a ponto de não causar dano algum à saúde da mulher. Esse foi o sinal decisivo para pensar na possibilidade de freio nos tratamentos.

“Decidi aceitar a sugestão de meu médico de seguir um só tratamento. Sei dos riscos, mas me sinto segura”, diz a americana Denise Truscott, de 61 anos, diagnosticada com um tumor na mama esquerda há um ano e oito meses. Há poucos meses, um dos mais completos estudos sobre o tema, publicado na revista americana JAMA Oncology, a grande referência no assunto, embasou a conduta pondo em xeque o papel da radioterapia no tratamento do carcinoma mamário in situ. Ao longo de vinte anos, cerca de 100 000 mulheres foram acompanhadas por pesquisadores de um grupo de universidades de Toronto, no Canadá. Confirmou-se que aquelas submetidas à radiação corriam um risco de morte semelhante ao das que não fizeram esse tratamento – que seria, portanto, plenamente descartável. Uma pesquisa recém-iniciada nos Estados Unidos poderá fazer inclinar ainda mais a gangorra para o lado de quem defende, também na medicina, a clássica postura do “menos é mais”. Oncologistas e patologistas de cinco centros da Universidade da Califórnia acompanharão mulheres com carcinoma in situ que não serão submetidas nem mesmo a cirurgia. O trabalho será crucial para avaliar o tipo de célula que pode evoluir ou não.

Estima-se que até 75% dos pacientes com cânceres inofensivos, como o carcinoma in situ, sejam submetidos a doses exageradas de terapias. Nessa família se enquadram também alguns tipos de câncer de próstata, tireoide e pele, além da mama. Eles têm em comum o fato de serem vagarosos, apresentarem baixa malignidade e serem formados pelas chamadas células de revestimento. Ou seja, ficam restritos à superfície do órgão que ocupam. Recentemente, um grupo de médicos dos Estados Unidos, liderado pela oncologista Laura Esserman, da Universidade da Califórnia, propôs, em artigo também no JAMA Oncology, a reclassificação dos tumores menos graves – em vez de receberem a denominação “câncer”, aquela dos dicionários, passariam a se chamar “lesões indolentes de origem epitelial”. Na prática, independentemente da alcunha que a doença possa levar e por mais vagarosa que se mostre uma transformação celular, a decisão de um médico de reduzir um tratamento no caso do câncer inicial é delicadíssima. Não há ainda tecnologia capaz de prever com precisão quais células se tornarão malignas, tampouco quando e como isso ocorrerá. Cada caso deve ser avaliado e tratado de forma absolutamente individual. “Na maioria das vezes, as ferramentas disponíveis ainda não me permitem afirmar com 100% de segurança se uma decisão médica se configura ou não como excesso de tratamento”, diz o oncologista Sergio Simon, do Centro Paulista de Oncologia, em São Paulo, e do Hospital Albert Eisntein.

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Há, portanto, um beco de saídas estreitas. Como reage o paciente diagnosticado com um câncer inicial, com pouco risco de vir a ser agressivo, se lhe oferecem um caminho sem remédios nem cirurgias? Pode ser penoso submeter-se a essa nova linha. É compreensível. Para muitos, é inconcebível a ideia de não usar todos os recursos para extirpar um tumor ou reduzir o risco de seu retorno. “Testes genéticos desenvolvidos na última década ajudam a determinar quais terapias são as mais indicadas para alguns tipos de tumor, evitando, assim, o excesso de procedimentos”, diz Fernando Maluf, chefe do departamento de oncologia clínica do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes, da Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Há casos, contudo, evidentemente avessos a essa postura mais leve, mais tranquila. São os cânceres de forte componente genético, como o que acometeu a atriz americana Angelina Jolie. Em 2013 ela descobriu ser portadora de uma anomalia no gene BRCA1, que já havia vitimado a mãe, a tia e a avó. Mulheres com esse tipo de alteração têm 85% de probabilidade de desenvolver tumores mamários e risco 60% maior de apresentar câncer no ovário. Por causa disso, Angelina decidiu extirpar as mamas e os ovários de forma preventiva.

A ideia de preservar o paciente o máximo de tempo possível dos violentos efeitos colaterais dos tratamentos oncológicos começou a ser utilizada no mundo masculino, o do câncer de próstata, nos idos da década de 90. Os tipos de tumor da glândula em estágio inicial e de progressão lenta podem, perfeitamente, ser apenas acompanhados com exames de rotina. Em média, o paciente faz de seis em seis meses uma extensa e minuciosa bateria de exames, de modo a manter o controle da evolução da doença – são repetidas, por exemplo, dosagens sanguíneas das taxas da proteína associada ao tumor, o chamado PSA, e biópsias para medir a agressividade. “Cerca de 10% a 15% dos doentes já são acompanhados desse modo”, diz Gustavo Guimarães, urologista do A.C. Camargo Cancer Center. São 7 000 novos pacientes todos os anos nessa condição. Esses doentes deixam de se submeter a cirurgia de extração total da glândula, um procedimento que oferece o risco de 20% a 50% de incontinência urinária e impotência sexual irreversível. Diz um dos aforismos mais utilizados na medicina, desde o fim do século XIX, e agora recuperado pela oncologia: primum non nocere (em primeiro lugar, não se deve causar dano).

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