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Pílula anticâncer: o populismo faz mal à saúde

A Câmara dos Deputados atropela as normas da ciência — e o bom-senso — ao aprovar a liberação de uma cápsula anticâncer antes dos obrigatórios testes em humanos

Por Carolina Melo Atualizado em 24 Maio 2016, 16h27 - Publicado em 11 mar 2016, 21h01

“O professor Gilberto Chierice cedeu algumas pílulas ao meu pai, que está com câncer. Em oito dias, meu pai, que estava na cama, com oxigênio, saiu da cama, está andando, vivendo uma nova vida. É incrível o efeito desse remédio.” As palavras foram ditas recentemente pelo deputado federal Celso Russomanno (PRB-­SP), pré-candidato à prefeitura de São Paulo, em um programa de televisão. O generoso doador citado é um professor aposentado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos. A pílula celebrada é a fosfoetanolamina sintética, cápsula desenvolvida por Chierice no início da década de 90, em um pequeno laboratório improvisado dentro da universidade. O pai de Russomanno morreu em fevereiro, pouco tempo depois do pronunciamento, em decorrência do câncer. Na semana passada, Russomanno voltou a ganhar os holofotes com a defesa do composto. Juntamente com um grupo de deputados, ele apresentou projeto de lei que autoriza a fabricação, a distribuição e o uso da fosfoetanolamina no tratamento de câncer. O projeto foi aprovado pela Câmara e agora será apreciado pelo Senado. Depois, caso siga em frente, será levado para o sim ou não da presidente.

Com a decisão, suas excelências atropelaram as normas da ciência. O projeto autoriza o uso da fosfoetanolamina no tratamento de cânceres sem que ela tenha sido ao menos testada em humanos. “É um projeto de lei vergonhoso, sem respaldo nas pesquisas”, diz Fernando Maluf, chefe do departamento de oncologia do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes, da Beneficência Portuguesa de São Paulo. Os autores do texto chegam a contemplar a ausência do aval científico para a liberação da droga. De acordo com o artigo 2º do projeto de lei, “poderão fazer uso da fosfoetanolamina sintética, por livre escolha, pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, desde que observados os seguintes condicionantes: laudo médico que comprove o diagnóstico e assinatura de termo de consentimento e responsabilidade pelo paciente ou seu representante legal”. O presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Jarbas Barbosa, logo denunciou a falta de bom-senso e o indevido namoro com a irresponsabilidade. “Não podemos encurtar caminho recorrendo ao lobby no Congresso”, disse Barbosa.

Em tese, nas hipóteses de estudo, a fosfoetanolamina pode funcionar, e não se deve descartar a possibilidade de bons resultados. Ela interfere no ciclo celular, bloqueando a proliferação irregular das células, um dos mecanismos associados ao câncer. O ponto é outro: o mecanismo só foi registrado, até agora, em experimentos de cultura de células – e em camundongos. É fundamental, como impõe o protocolo internacional farmacêutico, passar por todas as fases de testes em humanos (veja o quadro abaixo). O tempo mínimo é de cinco anos. Os primeiros estudos com humanos devem começar apenas em abril. Eles serão coordenados pelo reputado oncologista Paulo Hoff, do Instituto do Câncer de São Paulo. A chance de uma substância que entra na fase 1 de pesquisas clínicas chegar até a etapa final é de cerca de 2%. O restante fica pelo caminho, por segurança. Mas a Câmara dos Deputados não quis nem saber e mandou bala.

O tempo para o aval científico
O tempo para o aval científico ()
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A fosfoetanolamina ganhou fama em outubro do ano passado. Pacientes com os mais variados tipos de câncer e seus familiares formavam filas enormes na USP de São Carlos para receber o medicamento, de escassa produção. O drama começou depois que uma liminar do Supremo Tribunal Federal autorizou a entrega das pílulas a um paciente do Rio de Janeiro. A decisão do STF levou centenas de doentes a entrar com ações na Justiça para obter o “remédio milagroso”. Ao mesmo tempo, disseminavam-se pelas redes sociais falsas informações sobre sua eficácia. Muitos abandonaram os tratamentos tradicionais e comprovados, inclusive quimioterapia e cirurgia. Levar a demanda a votação, dando aval a algo que supostamente poderia salvar vidas, é um gesto populista e perigoso. É um desserviço que confunde e desinforma, além de fazer troça dos protocolos científicos consagrados em todo o mundo civilizado.

Com reportagem de Natalia Cuminale

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