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O novo efeito placebo

Estudo de Harvard revela que áreas do cérebro dos médicos associadas ao alívio da dor são ativadas quando eles acreditam ter tratado um paciente — e que isso ocorre mesmo se o tratamento tenha sido feito com placebo. Descoberta pode mudar relação médico-paciente

Por Vivian Carrer Elias
14 fev 2013, 08h34

O tratamento médico se apóia em uma somatória de fatores para obter êxito. Gastam-se bilhões de dólares na criação de medicamentos mais eficazes, na construção de hospitais mais modernos e no desenvolvimento de equipamentos mais poderosos. Um ingrediente fundamental, porém, continua sendo o modo como os médicos relacionam-se com os pacientes. A boa relação entre as duas partes pode ajudar na recuperação do paciente. Nesta equação, cheia de variáveis, acaba de se somar o poder do efeito placebo, que, mesmo sem potencial curativo, pode ser de grande valia no aumento do bem-estar de quem está doente.

E como o efeito placebo pode ajudar? Já foi amplamente documentado como pílulas recheadas de substâncias inócuas fazem pacientes sentirem menos dores. É capaz até de provocar alterações na pressão arterial ou até mesmo aliviar sintomas da doença de Parkinson. Todo esse poder, no entanto, tem atualmente pouca valia para o tratamento sério de quem está doente. Placebos não matam bactérias, tampouco reduzem tumores. E mesmo como paliativo para dores crônicas, seu uso é eticamente questionável, já que envolve o ato de enganar o paciente.

É neste cenário que entra uma nova pesquisa, publicada na edição deste mês do periódico Molecular Psychiatry, uma publicação do grupo Nature voltada para “elucidar os mecanismos biológicos por trás das desordens psiquiátricas”, pode resolver esse impasse ao apontar um caminho bastante promissor para o uso dos placebos: aperfeiçoar a relação entre médico e paciente.

O grau de resposta de um paciente de um paciente a um placebo depende de uma série de variáveis, que vão desde a cor, o tamanho e o gosto da pílula, passando pelo modo como ele é administrado (injeções são mais eficazes que comprimidos), até a maneira do médico realizar a consulta. Obviamente, aqueles que ganham a confiança dos pacientes obtêm melhores resultados.

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A pesquisa da Molecular Psychiatry abre possibilidades justamente nesse campo. O estudo mostrou, pela primeira vez, que as mesmas áreas ativadas no cérebro dos pacientes quando eles recebem um estímulo que carregue a promessa de aliviar a dor – seja um placebo ou um analgésico real – também são ativadas no cérebro dos médicos que acreditam ter obtido sucesso no tratamento desses pacientes. Embora ainda não seja claro o que fazer de prático com esse resultado, é possível que ele seja o primeiro passo para levar a relação médico-paciente a um novo patamar.

“Esse é o primeiro passo para tentar entender a neurobiologia envolvida na relação entre médicos e pacientes, a qual sabemos que contribui significativamente na resposta ao placebo. Ao menos já sabemos que será importante para levar a novas pesquisas que possibilitem afirmar algo sobre o impacto desses mecanismos na melhora da saúde dos pacientes”, disse a coordenadora da pesquisa, Karin Jensen.

“Um ponto importante desse estudo é que se o médico realmente acredita no tratamento que prescreve, ele vai transmitir essa segurança ao paciente. Isso pode levar a melhores resultados de saúde, como outras pesquisas já mostraram”, disse ao site de VEJA Felipe Fregni, brasileiro que dirige o Laboratório de Neuromodulação do Hospital Geral de Massachusetts, filiado à Universidade Harvard. “Já sabíamos que uma relação de empatia e confiança com o médico leva a melhores quadros de saúde do paciente, e esse estudo comprova o que imaginávamos. O médico não deve ser puramente técnico.”

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Placebo levado a sério – A pesquisa indica a recente mudança de visão em relação aos placebos – de pílulas inúteis à parte integrante do processo terapêutico. E é fruto do Programa em Estudos do Placebo & Encontro Terapêutico, que pertence ao Centro Médico Beth Israel Deaconess, filiado à Faculdade de Medicina de Harvard, em Boston, nos Estados Unidos. O programa, criado em 2011, é o primeiro dedicado a pesquisar os efeitos do placebo de uma forma interdisciplinar, envolvendo diversas áreas da ciência. O centro é dirigido por Ted Kaptchuk, que estuda o tema há quase quatro décadas.

Kaptchuk é autor de uma série de pesquisas sobre o efeito do placebo no tratamento de doenças. Um de seus estudos, publicado em 2011 no periódico The New England Journal of Medicine, mostrou que o placebo é capaz de fazer com que pessoas com asma se sintam tão bem (com menos falta de ar, por exemplo) quanto indivíduos com a doença que recebem medicamentos. Sua pesquisa se baseou em 39 pessoas com asma. Elas deixaram de fazer uso de seus remédios para a doença e foram submetidas a quatro tipos de tratamentos diferentes, um de cada vez. As abordagens incluíam inalar albuterol (remédio para asma); inalar um placebo; passar por sessões de ‘acupuntura falsa’ (com agulhas que pareciam perfurar a pele, mas não o faziam); e não ser submetido a tratamento algum.

Kaptchuk descobriu que, de fato, os remédios para asma melhoram os resultados dos testes de função pulmonar dos pacientes. Nesse sentido, o placebo não parece ter efeito algum. No entanto, quando os pacientes receberam tratamentos falsos, eles relataram ter sentido praticamente a mesma melhora (de cerca de 50%) do que quando receberam os medicamentos reais – que foi maior do que quando não receberam nenhum tratamento. Segundo Kaptchuk, isso mostra que realmente existe algum tipo de interação entre a mente e o corpo que interfere diretamente na sensação de falta de ar que um paciente com asma sente. Ou seja, para tratar de fato a doença, o placebo se mostrou inútil, mas ajudou bastante a melhorar a maneira como o paciente se sentia.

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A verdade é que essa interação pode ser explorada além das pílulas e injeções falsas. Um dos estudos que comprovou que uma boa relação com o médico pode interferir no bem-estar do paciente, publicado no fim do ano passado, foi feito pelo radiologista Issidoros Sarinopoulos, pesquisador da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. “Nós mostramos que a presença de um bom médico tem um efeito calmante na atividade de determinadas regiões do cérebro, especialmente as relacionadas à dor. Pacientes que têm uma boa relação com o médico se sentem menos estressados e são mais capazes de lidar com a dor”, disse Sarinopoulos ao site de VEJA.

Como foi feita a pesquisa

A coordenadora da pesquisa, Karin Jensen, neurocientista do Programa de Estudos do Placebo de Harvard, explica que quando alguém apresenta algum sintoma, como uma dor muscular, por exemplo, um simples estímulo que carregue a promessa de que irá aliviar essa dor – seja um analgésico ou um placebo – ativa duas áreas do cérebro relacionadas ao controle das emoções. São elas o córtex pré-frontal ventrolateral (CPFVL) e o córtex cingulado anterior rostral (rACC), associadas à expectativa de alívio da dor e ao sistema de recompensa cerebral (que gera prazer após a exposição a algum estímulo).

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Curiosamente, o estudo de Jensen descobriu que essas mesmas regiões também são ativadas no cérebro do médico quando ele acredita que foi bem-sucedido ao tratar um paciente. “Quando interagimos com outras pessoas, há algumas ativações cerebrais em comum, que vêm de experiências individuais ou relacionadas ao outro indivíduo. No caso, os médicos têm ativadas regiões do cérebro que correspondem ao que o paciente está sentindo”, disse a pesquisadora ao site de VEJA.

No estudo, a equipe montou um cenário no qual os médicos realmente acreditassem que estavam tratando as dores de seus pacientes e, por meio de exames de ressonância magnética, monitoraram o que se passou no cérebro dos profissionais. Para tornar isso possível, os pesquisadores selecionaram 18 médicos, dez homens e oito mulheres, de especialidades variadas, e duas atrizes de 25 anos que foram orientadas a desempenhar o papel de pacientes. Aos médicos, os autores do estudo disseram que as atrizes eram, na verdade, estudantes que se voluntariaram para outro estudo científico.

Cada médico atendeu uma atriz e avaliou fatores como histórico de saúde, estilo de vida, uso de medicamentos e pressão arterial. Após a consulta, os pesquisadores mostraram ao médico dois dispositivos elétricos – um capaz de provocar dor por meio do calor e outro de aliviá-la com estímulos elétricos – que seriam usados nos pacientes. No entanto, o eletrodo que provocava o alívio da dor não funcionava de fato, apenas provocava um efeito placebo.

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Para fazer com que os médicos acreditassem que o dispositivo que deveria promover o alívio da dor funcionava, a equipe testou o aparelho nos próprios médicos. A ‘farsa’ aconteceu da seguinte forma: os pesquisadores colocaram os dois dispositivos nos médicos, um em cada braço. Em um primeiro momento, eles disseram que o aparelho que alivia a dor estava desligado e emitiram altas ‘doses de calor’, capazes de provocar uma dor forte. Depois, a equipe afirmou que havia ligado o dispositivo que alivia as dores e então emitiu outra ‘dose de calor’, mas desta vez com uma temperatura mais baixa. Isso fez com que os médicos tivessem a impressão de que a dor foi menor graças ao dispositivo, portanto, passaram a acreditar na sua eficácia.

Em seguida, esses dois dispositivos foram colocados nos braços dos pacientes. O médico entrou em uma máquina de ressonância magnética espelhada, de onde conseguia olhar para o rosto de seu paciente, e também recebeu um aparelho com três botões. Os pesquisadores disseram ao médico que o botão ‘tratar’ faria com que o paciente recebesse estímulos de dor e, em seguida, de alívio; o ‘não tratar’ faria com que o indivíduo sentisse dor, mas não recebesse estímulo de alívio; e o ‘controlar’ não provocaria nem dor e nem alívio ao paciente. No entanto, as atrizes que se faziam passar por pacientes não receberam, em nenhum momento, estímulos de dor e nem de alívio, mas faziam expressões faciais neutras (sem dor) ou de dor de acordo com o botão pressionado pelo médico.

Os pesquisadores, então, compararam as imagens do cérebro dos médicos obtidas quando eles pressionaram o botão ‘tratar’ com as quando eles escolhiam a opção ‘controlar’. “Fizemos essa comparação porque em ambos os casos o paciente estava, na concepção do médico, livre da dor. A única diferença é que, na primeira situação, o médico sabia que ele era o responsável pelo alívio da dor, enquanto que no outro caso, ele não tinha nada a ver com a ausência da sensação”, disse a neurocientista Karin Jensen. De acordo com as conclusões da pesquisa, as regiões CPFVL e rACC foram ativadas no cérebro dos médicos somente quando eles acreditavam que foram os responsáveis por reduzir a dor de um paciente.

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