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Como é a vida com TOC? Novo livro responde

O editor da revista científica 'Nature', David Adam. conta em detalhes como é sua rotina com o transtorno obsessivo compulsivo (TOC), distúrbio que comete 3% da população mundial. O relato está em 'O Homem que Não Conseguia Parar', da editora Objetiva, recém-lançado no Brasil

Por Carolina Melo Atualizado em 24 Maio 2016, 16h28 - Publicado em 21 jun 2015, 10h30

O inglês David Adam, de 43 anos, é editor da revista científica Nature e autor de O Homem que Não Conseguia Parar: TOC e a história real de uma vida perdida em pensamentos (tradução de Flávia Assis; Objetiva; 256 páginas; 27,90 reais), recém-lançado no Brasil. Em sua obra, Adam relata em detalhes as duas décadas de convívio com o transtorno obsessivo compulsivo (TOC), doença psiquiátrica que atinge 3% da população. Quem padece da doença é acometido por pensamentos intrusivos ou ideias recorrentes. No livro, o editor descreve os diversos episódios de compulsão que sofreu ao longo da vida: ele tinha medo de ser infectado pelo vírus HIV. Adam utilizava luvas para examinar se havia tocado em objetos sujos de sangue e recusava-se a apertar a mão de pessoas que apresentavam um simples curativo nos dedos. Até decidir escrever o livro, o escritor manteve a doença em segredo. Disse Adam ao site de VEJA, com entrevista exclusiva no Brasil: “Ao resolver lançar o livro, falei para os meus pais que eu tinha duas notícias, uma boa e outra ruim. A boa era que eu estava realizando o sonho de escrever um livro. A ruim é que o livro seria sobre um transtorno do qual sou vítima.”

Em seu livro, o senhor afirma que o TOC foi desencadeado pelo medo da contaminação pelo vírus HIV. Isso parece bastante incomum. Eu acreditava nisso até pouco tempo atrás. Achava que se tratava de um problema pessoal. Mas, depois de falar do meu problema no livro, passei a receber mensagens de inúmeras pessoas com o mesmo tipo de transtorno. Elas relatam exatamente as mesmas experiências, os mesmos medos e crises de ansiedade. Digo mais: esse compartilhamento foi muito importante para mim.

Como a sua doença foi deflagrada? Eu tinha 18 anos e havia acabado de entrar na faculdade para cursar engenharia química e lá conheci uma veterana que me convidou pra sair. O encontro não deu em nada, mas no dia seguinte, quando meu amigo questionou como tinha sido, menti e falei que tivemos relações sexuais. Ele então perguntou se havíamos usado preservativo e menti novamente – disse que não. Ele então respondeu “você pode ter pegado aids”. A partir desse momento, a frase do meu amigo não saiu da minha cabeça. Ao mesmo tempo em que eu tinha certeza de que era uma ideia insana eu fui tomado pelo pânico da hipótese de estar contaminado. Fui dormir esperando que o pensamento fosse embora, mas ele continuou em minha mente no dia seguinte e durante outros tantos dias. Minha vida até então era absolutamente normal. Passei minha infância e adolescência livre da doença. O que é normal. O distúrbio costuma ser deflagrado no começo da vida adulta.

O que mudou na sua vida, na prática, com a doença? Tornei-me o retrato da compulsão. Passei a checar tudo inúmeras vezes. Se eu fosse arranhado por algum objeto, por exemplo, eu embalava o material e levava para casa. Lá, colocava luvas de inverno e passava horas analisando com lupa para ter certeza de que não estava com gotas de sangue. A certeza, claro, nunca chegava. Também passei a inspecionar vasos sanitários, guardanapos, telefones, toalhas – tudo que supostamente pudesse me infectar. Além disso, se precisasse apertar a mão de alguém que tivesse qualquer arranhão, fazia de tudo para evitar o contato físico. Ligava inúmeras vezes para um serviço de atendimento telefônico que esclarecia dúvidas da população sobre aids. Perguntava sempre aos atendentes sobre todas as maneiras de contrair o vírus só para ter certeza de que eles me diriam que eu não corria esse risco. Mas eu não me contentava e repetia a ligação dez vezes para ouvir a opinião de outras pessoas, só pra garantir. Com o tempo a equipe de serviço já conhecia a minha voz e vice-versa. Cheguei a mudar o sotaque e usar um tom de voz diferente para eles não me reconhecerem. Passei anos da minha vida nessa tortura.

O senhor trabalha com a edição de artigos científicos. Tinha consciência de que esses sintomas eram do TOC? Claro que sim. A questão é que escondia minha condição de todos. Só minha mulher e dois amigos sabiam dela. Levei duas décadas para revelar aos meus pais. E contei para eles apenas porque ia publicar o livro sobre o assunto. Na verdade, eu acreditava que se pesquisasse muito sobre o assunto – e isso de fato aconteceu – poderia me convencer de que não havia com o que me preocupar e o pensamento obsessivo iria embora. Mas ele nunca foi. Agi como a maioria das pessoas em minha situação, que de alguma forma têm contato com o universo da saúde: subestimei a doença e posterguei o tratamento até chegar a um limite.

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Qual foi a situação limite que o levou a procurar ajuda médica? Foi minha filha. O medo de atrapalhar a vida dela por causa da doença. A situação mudou quando a levei para o parque pela primeira vez. Ela era ainda um bebê. Lá, percebi que ela tinha um pouquinho de sangue na perna. O sangue provavelmente era meu. Eu tinha machucado meu dedo. Mas fiquei aterrorizado com a hipótese de ser sangue contaminado de um estranho. Eu a coloquei e tirei do balanço mais de uma dezena de vezes para me certificar de que não havia sangue no brinquedo. Voltei ao local durante a noite, com uma lanterna, para fazer outra busca. Ali percebi o quanto a rotina dela poderia virar um inferno no futuro. Marquei uma consulta na manhã seguinte.

É natural o portador de TOC demorar a procurar ajuda médica, já que sintomas da doença podem ser confundidos com outros problemas, como crises se ansiedade ou medo exagerado. O senhor tem algo a dizer para ajudar no diagnóstico? As pessoas levam, em média, dez anos para procurar ajuda médica por causa dessa confusão. Mas a diferença entre o que é ou não saudável é muito clara. Falta conhecimento e espero que meu livro sirva para isso. O pano de fundo para o TOC é um medo irreal em relação a uma situação ou objeto real. Gosto de explicar a doença por meio do exemplo das pessoas que têm medo de viajar de avião. O medo não patológico se esvai ou diminui quando seu amigo lhe diz que o risco de a aeronave cair é mínimo. Para quem tem TOC, essa informação é absolutamente indiferente. O doente foca em um dado apenas: o de existir o risco de o avião cair. O portador de TOC acredita piamente no improvável. Ele tem certeza de que é a pessoa, entre bilhões de outras, que não vai se encaixar nas estatísticas. Ou seja, o avião, para ela, cairá.

Como é lidar com a doença hoje? Continuo tendo os mesmos tipos de pensamentos, diariamente. Se for apertar a mão de alguém, sempre penso se posso me infectar. A diferença é que agora eu aperto a mão. Os pensamentos vêm e vão. Mas agora consigo espantá-los.

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