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A longa busca pelo equilíbrio perfeito

Poucos conseguiram mensurar o efeito libertário que pílula anticoncepcional proporcionaria: as mulheres estavam livres para o prazer. A luta agora é outra

Por Branca Nunes, Vivian Carrer Elias
22 out 2011, 14h56

“Antes, as mulheres queriam ser perfeitas donas de casa. Hoje são escravas do corpo. A fonte de satisfação continua a mesma: ser um objeto de desejo masculino”

Mary Del Priore, historiadora

“É mais uma invenção masculina para controlar nossas vidas e nossos corpos”, esbravejavam feministas no começo da década de 1960, depois da aparição no mercado das primeiras pílulas anticoncepcionais. Mais tarde, a escritora americana Pearl S. Buck, Nobel de Literatura em 1938, classificou a novidade como “um pequeno objeto que poderia ter um resultado mais devastador em nossa sociedade que a bomba atômica”. Nem Pearl, nem as feministas conseguiram mensurar o efeito libertário que a pílula teria anos mais tarde. No século XXI, esse é o método contraceptivo escolhido por 68% das mulheres entre 18 e 46 anos – integrantes das chamadas gerações Y e X -, segundo uma pesquisa encomendada pela Janssen Farmacêutica ao Ibope e divulgada nesta semana. A revolução decorrente da popularização da pílula permitiu às mulheres a prática do sexo por prazer. De acordo com 45% das entrevistadas, a formação de uma família perdeu espaço para a consolidação de uma carreira profissional entre as prioridades femininas. A batalha foi vencida, mas a guerra continua.

“Apesar de todas as conquistas, continuamos machistas”, sustenta a historiadora Mary Del Priore, autora de Histórias Íntimas, entre outras três dezenas de livros sobre temas que envolvem a condição da mulher na sociedade. “Antes, queríamos ser perfeitas donas de casa. Hoje, estamos escravas do corpo, do modelo Barbie de beleza. No fundo, a fonte da nossa satisfação continua a mesma: ser um objeto de desejo masculino”.

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A pesquisa – Realizada num universo que abrange 1.000 mulheres espalhadas por 10 grandes cidades brasileiras, a pesquisa do Ibope procurou descobrir como as transformações sociais e comportamentais das gerações X e Y (mulheres nascidas depois de 1965) interferem na escolha do método contraceptivo, em comparação com a geração baby boomer (entre 1946 e 1965). Organizada por profissionais da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o estudo mostrou que a prioridade das boomers é a formação da família (59%), atividades do lar (17%), carreira e trabalho (14%), preocupação com a saúde (5%) e, por último, estar sempre bonita e na moda (4%). As XY, pensam bem diferente.

A artista plástica Flora Andrade, 27 anos, é uma típica representante dessa geração. Perdeu a virgindade antes dos 16 (assim como 80% das mulheres entre 18 e 46 anos) por “iniciativa própria” (39%) e em primeiro plano coloca a carreira e o trabalho (45%). A lista segue com a formação da família (31%), estar sempre bonita e na moda (10%), preocupações com a saúde (9%) e atividades do lar (4%). Curiosamente, tanto para as boomers quanto para as XY o papel de “mãe” precede o de “profissional”. Outra constatação relevante: 35% das XY se consideram “esposas”, mas só 21% se veem como “parceira sexual”. Para as boomers, essas porcentagens são de 59% e 13%, respectivamente.

“Embora ainda seja um número pequeno, o crescimento de 8% de mulheres que também se consideram parceiras sexuais é bastante significativo”, observa Carmita Abdo, professora do Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). “Isso revela uma mudança da condição feminina ao longo das últimas décadas”.

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Calcula-se que aproximadamente 80 milhões de mulheres no mundo usem a pílula anticoncepcional. No Brasil, o número gira em torno de 9 milhões. De acordo com o ginecologista Jarbas Magalhães, secretário da Comissão Nacional de Anticoncepção da Febrasgo, o segundo método contraceptivo mais comum no país é a laqueadura, usada por 20% a 30% das mulheres sexualmente ativas, seguido do Diu (7%). A soma de todos os outros métodos (veja a lista abaixo), como adesivos, anéis e implantes, não ultrapassa 1%.

“A pílula ainda é o anticoncepcional mais aceito”, afirma Magalhães. “Apesar disso, notamos que as pacientes jovens estão mais receptivas a métodos que não precisem ser tomados diariamente. A nova geração pensa no lado prático”. (continue lendo a reportagem)

Diferença de gerações – Para Mary Del Priore, a pesquisa reforça dados históricos que comprovam a mudança de mentalidade. Nascidas em famílias conservadoras, as boomers ganharam autonomia na maturidade, quando entraram no mercado de trabalho, descobriram que era possível separar a reprodução do prazer sexual e viveram a assimilaram o divórcio. “Nos anos 60, a separação ainda era considerada um tipo de lebra”, observa a historiadora. “A geração XY nasce da boomer. Ou seja, já chega ao mundo com essa sociedade em transformação”.

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Carmita Abdo conta que tais mudanças contribuíram para que as mulheres iniciassem a vida sexual mais cedo e deixassem o casamento e a gravidez para mais tarde. “Hoje, o sexo reprodutivo começa a partir dos 32, 33 anos, quando se estabelece financeira e profissionalmente”, conta. “A vida sexual, entretanto, como uma prática basicamente erótica, inicia-se antes dos 16 anos e a diversidade de parceiros maior”.

As boomers idealizaram as mulheres inseridas no mercado de trabalho, ganhando dinheiro e desfrutando de plena liberdade sexual. O que parecia perfeito, não é.

O padrão Barbie – A obrigação de ser uma dona de casa exemplar foi substituída pela obrigação de ser impecável, acredita Mary. “As mulheres se tornaram escravas do espelho”. Mary lembra que o “padrão Barbie” reproduz a estética das prostitutas francesas que desembarcaram no Brasil no século XIX: loiras, altas, com seios fartos e magras. “Um tipo de beleza que destoa da nossa cultura, da chamada morenidade”, explica a historiadora. “A miscigenação criou mulheres mais baixas, curvilíneas. Ter como objetivo a Barbie destroça a auto-estima. Não é a toa que o Brasil é o segundo país do mundo em cirurgias plásticas. Estamos sacrificando nossa identidade física”.

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Para Mary, o culto à imagem é uma nova forma de submissão. “No decorrer do século, a brasileira se despiu nas revistas e nas praias, mas acabou cobrindo o corpo de creme e silicone”, repete. “A beleza não é mais vista como um conjunto de qualidades que incluem a elegância, o olhar, o charme. A exigência completamente esquizofrênica de um padrão único de beleza aparece ao mesmo tempo que as academias de ginástica, nos anos 70. No passado, a velhice era um sinal de sabedoria. Hoje, o corpo causa ansiedade e frustração”.

A jornada tripla – Cuidados com a beleza são apenas mais um ingrediente no coquetel que incorpora trabalho, família e vida pessoal. “A mulher passou da fase de querer ser igual ao homem e, ao mesmo tempo, não encontrou o equilíbrio”, acredita Carmita. Segundo a pesquisa do Ibope, 56% das entrevistadas desempenham o papel de chefe de família – em oposição aos 18% das boomers.

A exaustão e o estresse chegaram juntos com a profissionalização. “Ao tentar copiar o modelo masculino, o único que conhecia até então, a mulher não conseguiu equilibrar o público e o privado”, diz Mary. “As europeias conseguem lidar com isso de maneira mais humana, porque lutaram por esses direitos. Na Alemanha, por exemplo, as mães têm um dia livre por semana para ficar em casa. As férias não são concentradas em um único período do ano. Existem maneiras de amenizar o sacrifício da jornada tripla. O problema é que a educação feminina no Brasil começou na década de 1920, 1930. São menos de 100 anos. Isso contribui para o atraso”. Para a historiadora, as mulheres deveriam, em vez de adotar valores masculinos, repensar e valorizar as virtudes femininas, criando uma ética própria.

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A vida solitária – Os modernos princípios femininos passam pela valorização da vida solitária. “Vemos claramente que as meninas entre 20 e 25 anos querem não só retardar a maternidade, mas algumas vezes não ter filhos”, registra Magalhães. “É uma tendência que ainda não foi confirmada empiricamente, mas que aparece em consultas clínicas”.

Mary conta que só descobriu a “solidão criativa” nos anos 80, durante o pós-doutorado na França. Casada pela segunda vez, mãe de três filhos, viu que, por escolha próprias, algumas mulheres optavam por não constituir uma família. “Isso está chegando ao Brasil quase 30 anos depois”, observa. “Ficar para titia é uma ideia cada vez mais ultrapassada”.

Apesar das mudanças, o caminho ainda é longo. Para Mary, ele passa pela substituição da luta contra a balança, travada academias de ginástica, pela luta nas ruas. “Por incrível que pareça, a passeata que mais reúne público é a Parada Gay”, diz. “Ao mesmo tempo, não se consegue sequer juntar cem pessoas para reivindicar uma escola pública de qualidade. O coletivo cedeu espaço ao individual. Reverter essa lógica faria um bem enorme à mulher”.

Barbies, abelhinhas trabalhadoras, objetos sexuais, mães perfeitas – como sugere Carmita, o equilíbrio talvez esteja aí. Essa fórmula é a combinação perfeita das nossas filhas, mães e avós.

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