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A incrível história de Alexandre Reis, o cego que tem um cão-guia…cego

Esses animais passam até dez anos acompanhando diariamente os passos de seus donos. Quando eles não podem mais desempenhar suas funções e devem ser 'aposentados', seus proprietários têm um problema: o que fazer com o cachorro?

Por Juliana Santos
25 abr 2015, 13h20

O músico Alexandre Reis, morador de São Paulo, percebeu que havia algo errado com seu cão-guia, o labrador fêmea Hanna, no dia em que o animal o deixou esbarrar em um portão entreaberto em uma calçada. “Ela desviou, mas não me puxou para que eu fizesse o desvio. Aquele era um erro primário para um cachorro tão bem treinado”, lembra. No veterinário, Reis recebeu uma notícia supreendente: sua cadela, então com cinco anos, estava ficando cega.

Hanna foi diagnosticada com catarata no olho direito. Apesar de ser uma doença comum para a raça, não é esperada nessa idade. A cadela foi operada no hospital da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo e voltou a enxergar, mas logo desenvolveu um glaucoma e perdeu a visão naquele olho. No lado esquerdo, ela tem uma catarata ainda na fase inicial de desenvolvimento. “Como ela desenvolveu muito rápido a catarata do olho direito, meu receio é que ela desenvolva a do esquerdo a ponto de eu só descobrir depois de um acidente”, afirma o dono.

Para compensar a deficiência, Hanna começou a andar com a cabeça meio de lado, tentando aumentar o campo de visão. Ainda assim, os desafios se multiplicam para a dupla. “Em algumas situações eu tenho de guiar a Hanna para ela me guiar. Nas catracas do metrô, eu a treinei para não bater a cabeça nas laterais”, conta. Reis não circula mais com Hanna em lugares que ela não conhece.

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A situação inusitada chama atenção para um problema pouco explorado em relação a esses animais. Um cão-guia representa, para pessoas com deficiência visual, mais do que a possibilidade de locomoção. Quando a dupla se reúne pela primeira vez, o cachorro costuma ter de um e meio a dois anos de idade. A partir daí, dono e guia passam o tempo todo juntos, convivendo mais do que os animais de estimação, que ficam em casa à espera do retorno do dono. O cachorro costuma exercer sua função em média por oito anos. Depois desse tempo, vem um problema: o que fazer com um cão-guia quando ele não pode mais conduzir seu dono?

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Separação dolorosa – “O ideal é que o dono não fique com o cachorro quando ele se aposenta, porque isso pode atrapalhar o treinamento com o novo cão-guia”, afirma Alexandre Rossi, zootecnista e um dos principais especialistas em cognição de cachorros do Brasil. “O recomendado é que o animal vá morar com outra pessoa. Existem filas de famílias que querem adotar esses cães.”

De acordo com Rossi, estudos com cães-guia já mostraram que, quando eles precisam mudar de dono, se adaptam e ficam bem – desde que o animal seja bem cuidado. “A gente é que sofre mais”, diz. É o que revelou uma segunda pesquisa: a separação da dupla, do ponto de vista da pessoa, pode ser parecida com a morte do animal.

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Para Alexandre Reis, doar Hanna está fora de cogitação. “O vínculo é muito forte, até porque ela simboliza toda a minha experiência de vida. Quando eu penso nela eu não penso ‘eu tenho um cão-guia’, eu penso que é um pedaço da minha história”, diz. Ele acredita que, por ser tão condicionada pelo treinamento de guia, Hanna não se daria bem em um lar não preparado para ela. “Eu acho que ela adoeceria se fosse para outra família”, diz Reis. Por outro lado, Reis não sabe o que fazer com a cadela. O músico mora só e, mesmo que conseguisse outro cão-guia, não teria quem cuidasse de seu animal, ainda mais por estar habituado a viajar a trabalho.

“O momento de aposentar um cão é difícil, especialmente quando é o primeiro cão-guia, porque com ele a pessoa ganhou a independência”, afirma Moisés Vieira Júnior, instrutor de cães-guia do Instituto Iris, entidade sem fins lucrativos que treina e doa esses animais. “Ficar sozinho o dia todo não é o melhor para o cão, então a gente busca na família, nos amigos e pessoas próximas ao dono uma pessoa que possa ficar com o cachorro. Em último caso, recorremos à sociedade.”

Seleção e treinamento – Os cães escolhidos para passar pelo treinamento de guias costumam vir de uma linhagem genética que tem facilidade nesse trabalho. “Muitas vezes as instituições que treinam cães têm sêmen congelado de animais que ficaram bons nessa função, já que todos os cães-guia são castrados”, explica Rossi.

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Para exercer a função, os bichos precisam ser saudáveis, relativamente calmos e mansos, além de tolerantes à amplitude térmica. O tamanho e a velocidade dos passos do cachorro também são levados em consideração. “O pastor alemão, por exemplo, tem um passo mais rápido e acaba puxando o dono”, diz Rossi. Por atender a esses requisitos, o labrador é a raça mais utilizada atualmente.

Os filhotes selecionados vão viver com famílias temporárias, que têm a função de socializar esse cão e fazer com que ele se acostume a todas as situações pelas quais poderá passar no futuro, como andar na rua, ir a bancos, supermercados, teatros, andar de metrô e ônibus. Essas pessoas, que são voluntárias, têm uma autorização para estar com os cães em ambientes onde animais não são permitidos.

Quando completam um ano, ou um pouco antes disso em alguns casos, os cães vão para o centro de treinamento, onde passam cerca de três meses aprendendo a desviar de obstáculos e alertar o dono de possíveis desníveis e perigos no caminho. Umas das tarefas mais difíceis é evitar obstáculos aéreos, como um galho de árvore ou uma lixeira, já que os cachorros tendem a andar olhando para o chão. Os cães também são treinados para exercer uma “desobediência inteligente”: mesmo que o dono dê uma ordem, ele não vai cumprir se achar que não é seguro.

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Com um ano e meio ou dois, o cão pode ser reunido com sua dupla, a pessoa com deficiência visual. O perfil do animal e do dono são combinados, para que os cães mais ativos fiquem com as pessoas mais jovens, ou que se locomovem mais rápido, por exemplo. A dupla passa um período de mais ou menos um mês treinando juntos, com a ajuda dos instrutores, até que começam a andar sozinhos, supervisionados, e ganham independência. O animal contará com a assistência da instituição que o treinou durante todo o período em que exercer sua função.

A cada etapa do processo, os treinadores avaliam o desempenho dos cães e eliminam aqueles que não apresentam os resultados esperados. Isso porque o investimento para treinar o animal até que ele possa ir para casa com o dono é muito alto: a partir de 20.000 dólares.

Brasil – A quantidade de cães-guia no Brasil é insuficiente para atender à demanda dos portadores de deficiência. De acordo com dados de 2014 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o número desses animais no país “não passa de 100”. Paralelamente, o Conselho Brasileiro de Oftalmologia informa que o número aproximado de deficientes visuais graves é de 5,3 milhões, dos quais 1,2 milhão são cegos. O alto custo de treinamento e a dependência de doações são os principais problemas enfrentados pelas instituições, e as causas para que a quantidade de animais disponíveis continue tão restrita.

Fundado em 2012, o Instituto Iris se mantém exclusivamente por doações. Eles têm como objetivo entregar de quatro a oito cães por ano, mas às vezes nem atingem essa meta. Apenas 25 duplas foram formadas por eles, e a fila de espera por um cão-guia passa de mil pessoas.

Além disso, contar com a ajuda de um animal para a locomoção, no Brasil, é um desafio à parte. Os desníveis e buracos nas calçadas fazem com que os cães identifiquem obstáculos e parem de andar com frequência. “Se a faixa de pedestres não é respeitada, o cão acaba passando no meio dos carros e vai perdendo o treinamento que foi dado a eles”, explica Alexandre Rossi.

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