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‘Se consertarmos as cidades, consertamos o mundo’

O cientista político americano Benjamin Barber afirma que os Estados-nações estão com as mãos amarradas e defende maior autonomia e participação das cidades em questões globais

Por Diego Braga Norte 22 mar 2014, 17h39

O cientista político americano Benjamin R. Barber é famoso por ter e defender ideias à frente de seu tempo. Em 1995, ele publicou o best-seller Jihad X McMundo (Editora Record, 2003), que discorria sobre os conflitos inevitáveis entre os valores e instituições de um mundo globalizado e o sectarismo dos extremistas religiosos. O livro teve como um dos seus leitores e admiradores o então presidente Bill Clinton. Nas semanas seguintes ao 11 de setembro de 2001, vendeu mais de 40.000 cópias – os temores mais sombrios de Barber tinham se materializado na forma de um atentado contra um dos símbolos do capitalismo global, as Torres Gêmeas, em Nova York.

Quase vinte anos e cinco livros depois, as ideias de Barber voltam a chamar a atenção – desta vez com o livro If Mayors Ruled the World (Se os Prefeitos Governassem o Mundo, ainda sem edição prevista no Brasil), que fala da dificuldade que os países encontram em lidar com problemas globais, como aquecimento global, geração de emprego e renda, violência ou imigração. Em um cenário em que os interesses das nações se sobrepõem aos interesses comuns, a saída para a equação, diz Barber, seria incentivar as respostas locais e dar maior poder a prefeitos e cidadãos.

Exemplos de cooperação entre cidades ou iniciativas pioneiras não faltam: enquanto os Estados Unidos hesitam em assinar protocolos que limitem suas emissões de carbono, Los Angeles, Boston, Atlanta, Orlando e outras grandes cidades americanas implantaram um ambicioso programa para reduzir suas emissões – e vêm cumprindo suas metas. Já Detroit trabalha em um projeto para a concessão de 50.000 ‘vistos municipais’ para imigrantes que desejam viver e trabalhar na cidade – uma das mais afetadas pela crise de 2008.

Com mais de metade da população mundial vivendo em cidades, Barber não defende um retorno à Polis grega – onde cidades-estados tinham alianças mas eram também rivais -, mas sugere a construção de uma grande Cosmópolis, uma comunidade de cidades reunidas em um Parlamento de prefeitos. Em entrevista ao site de VEJA, Barber explicou suas ideias e mostrou como os prefeitos, se não podem governar o mundo, podem sim ajudar a consertá-lo.

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O cientista político americano Benjamin R. Barber
O cientista político americano Benjamin R. Barber (VEJA)

Se o senhor tivesse de salientar apenas uma ideia ou argumento de seu livro, qual seria? Que as cidades são a única esperança real de cooperação global para enfrentar todos os nossos desafios do século XXI – das alterações climáticas e doenças pandêmicas a imigração e guerras. Se mudarmos o foco das discussões, de Estados para municípios, de primeiros-ministros e presidentes para prefeitos, podemos alcançar resultados concretos mais rapidamente. Se consertarmos as cidades, consertamos o mundo.

Em seu livro, o senhor afirma que “a capacidade das cidades de cooperar além das fronteiras para perseguir seus objetivos comuns está criando um novo cenário global cujas implicações para os direitos civis e os bens públicos ainda têm de ser revelados”. Quais seriam essas implicações? Meu sentimento é que os objetivos e bens públicos urbanos são globais: sustentabilidade, mobilidade, diversidade, criatividade, interatividade, interdependência, por exemplo. Quando as cidades agem em conjunto, elas podem perseguir esses objetivos e bens públicos globais de forma eficaz. Elas não se tornam e não substituem as nações, mas trazem sua própria lógica para ajudar a solucionar problemas globais.

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O escritor russo Liev Tolstói escreveu que: “Todo mundo pensa em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo”. O senhor acha que os prefeitos (e especialmente os cidadãos) estão prontos para governar o mundo? Por que e em que aspectos? Prefeitos, como governantes, são pragmáticos em vez de ideológicos, ligados aos seus cidadãos, em vez de distantes como presidentes. Eles vêm dos bairros que governam, são figuras locais e não personalidades nacionais abstratas. Eles têm de corrigir problemas fazendo as coisas acontecerem. Essa é uma receita de que precisamos, é por isso que quando cidades trabalham juntas por meio de redes como a C-40 [Grupo de Grandes Cidades para Liderança do Clima], ICLEI [rede internacional que apoia a gestão local de resíduos, na sigla em inglês] e CGLU [Cidades e Governos Locais Unidos] – e talvez em breve por meio de um Parlamento de prefeitos – elas são capazes de resolver problemas que frustram os Estados soberanos.

O senhor escreveu que “os Estados-nações foram formados para maximizar a unidade interna e soberania jurisdicional e, portanto, tendem a fomentar a rivalidade em vez de cooperação entre si.” Por que isso aconteceu? Em outras palavras, o senhor acha que os Estados falharam em cumprir algumas de suas tarefas? Em um mundo de nações separadas e muitos problemas de fronteira (tivemos isso desde o século XVI até os dias de hoje), os Estados independentes definidos pela soberania e autonomia foram bem projetados para lidar com todos os grandes problemas políticos, econômicos e culturais dentro de suas próprias jurisdições. As suas independências e autonomias jurisdicionais funcionam muito bem dentro de seus próprios limites. Mas, em nosso novo tempo de interdependência e de globalização, os Estados delimitados por fronteiras simplesmente não podem lidar com os problemas globais. Estados soberanos foram feitos para um mundo diferente, um contexto que ficou para trás. No nosso atual, todas as questões-chave são globais e exigem respostas abrangentes que não sejam nacionais ou soberanas.

No livro o senhor escreve também que a globalização pode ser uma barreira para os Estados-nações cooperarem entre si. “Participação, a virtude da antiga cidade, tornou-se vítima do moderno Estado-nação, e está começando a se parecer com uma vítima em potencial da globalização e sua escala assustadora” , diz um trecho. Como a globalização pode desempenhar um papel para o seu conceito de democracia feito entre e pelas cidades? O que eu disse foi que as cidades de antigamente eram pequenas demais para a escala das sociedades nacionais modernas, e por isso deram lugar a novos Estados nacionais soberanos. Mas hoje, o Estado-nação é muito pequeno para a escala de um mundo globalizado e interdependente, com desafios que vão além das fronteiras. Nós precisamos globalizar a democracia ou democratizar a globalização – algo que as redes intermunicipais tornam possível. Com desafios na escala global, nós temos de ir além do conceito de Estado-nação. Não proponho uma volta à polis, mas um passo adiante à cosmópolis – com uma rede ou um Parlamento de cidades cooperando .

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Algumas cidades, como Nova York, Seul, São Paulo ou qualquer metrópole mundial são muito ricas, mas são exceções. A maioria das cidades do mundo é pequena e não tão rica (algumas delas, especialmente na América Latina, Ásia e África são realmente pobres). Como um Parlamento das cidades trabalharia para equilibrar essa situação? Algumas cidades são certamente mais ricas do que outras, mas vou citar alguns fatos: mais da metade da população mundial é urbana, e quase 80 % das pessoas do mundo desenvolvido vivem em cidades. Cidades produzem cerca de 80% da riqueza das nações. Mesmo as cidades mais pobres oferecem mais mobilidade social e oportunidades de emprego do que a zona rural, razão pela qual os pobres migram para as cidades. Além disso, a urbanização é uma realidade inelutável, por isso vamos ter de lidar com a realidade das cidades ricas ou pobres. Mesmo onde as cidades criam desigualdade, elas têm ferramentas para amenizar esse desequilíbrio: financiamento e subsídios para habitação, fomento da economia informal, mobilidade, educação pública e transporte público. Em outras palavras, ainda que a desigualdade e a pobreza atinjam as cidades, elas são mais capazes de lidar com isso do que as regiões rurais.

Como é que os Estados reagiriam se um Parlamento das cidades tirasse algumas de suas atribuições? Como, por exemplo, a Casa Branca reagiria se Pittsburgh estivesse em estreita colaboração com Cabul, no Afeganistão? O senhor acha que alguns dos relacionamentos entre as cidades seriam um problema para a política externa de seus países? Já vimos Estados ficarem imóveis em questões como as alterações climáticas e a imigração, enquanto cidades tomam medidas para lidar com elas. Os Estados não vão desaparecer, e as cidades continuarão pertencendo aos seus países, mas isso não vai impedir que elas cooperem entre si, como já estão fazendo. Não há argumentação contra o sucesso.

Citando o filósofo americano John Dewey, o senhor afirma que a democracia não é uma forma de governo, mas um modo de vida. Mas como tornar a democracia parte da vida cotidiana dos cidadãos? Os jovens são grandes usuários de mídias sociais, smartphones e conexões virtuais, mas muitos deles parecem não se preocupar com política. Como transformar sua energia e atividade social virtual em ações políticas reais? Um dos grandes pontos fortes das cidades sobre os Estados é que elas são mais propícias à participação e colaboração por parte dos cidadãos, que se sentem muito mais próximos do governo local do que do nacional. A confiança dos cidadãos em prefeitos permanece em torno de 70% na maioria dos países, enquanto a confiança nos governos nacionais está abaixo de 40%, ou até pior. Assim, a escala de governo municipal convida à participação. Além disso, as cidades estão fazendo experiências com orçamento e zoneamento participativos. São excelentes novas maneiras de atrair os cidadãos para governar e para decidir os rumos das cidades além de apenas votar e delegar um representante.

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Apesar de as cidades poderem fazer muito trabalhando juntas, em algumas questões elas serão sempre dependentes de seus Estados. Numa situação de crise – como o furacão Katrina ou um tsunami, por exemplo – ou em questão financeiras, elas têm de contar com alguém maior para apoiá-las. Como cidades mais independentes e nações poderiam coexistir de uma forma harmônica? Realmente, em relação às cidades, o único atributo que as nações têm que é realmente muito superior é o dinheiro. Mas são as cidades que geram riqueza, portanto os rapasses dos governos centrais são apenas uma forma de organizar a distribuição dessa riqueza. As cidades devem desenvolver – e algumas já desenvolvem – os seus próprios recursos para lidar com crises, seja no caso de terrorismo (em que a cooperação de inteligência entre cidades tornou-se chave) ou imigração (há cidades que oferecem identidades e vistos locais).

A Constituição dos Estados Unidos é uma peça que defende o real federalismo. Em outros países a situação é exatamente oposta: as Constituições resguardam um poderoso centralismo do governo nacional. Como as cidades poderiam trabalhar sob tais condições? A maioria dos grandes sistemas do mundo, ainda que em diferentes escalas, é federalista. Não apenas os EUA, mas o México, Canadá, Alemanha, Índia e muitos outros são Estados federalistas. Além disso, mesmo em Estados unitários como a França e a Grã-Bretanha, a ausência de um nível intermediário de governo pode dar mais poderes para os municípios. A subsidiariedade é um princípio em ambos os sistemas federalistas e unitários, mas há uma grande quantidade de espaço para mais autonomia em ambos.

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Em algumas partes do seu livro, o senhor demonstra simpatia por um caminho de governo pós-ideológico e mais pragmático. Como seria isso em um Parlamento de cidades, com diferentes municípios de diferentes correntes ideológicas? O poder de um Parlamento de cidades global como eu imagino seria de baixo para cima, não de cima para baixo, consensual e informal. Assim, as tentações de obter um poder central seriam menos perigosas em um Parlamento como esse. Além disso, a competição das cidades é diferente do que a concorrência entre Estados. Nações competem em um jogo global, mas limitado por suas fronteiras. As cidades não precisam respeitar essas fronteiras e mesmo assim são interdependentes.

Prefeitos e vereadores têm mandatos limitados e são ligados a partidos políticos. Sabendo disso, como construir um Parlamento de cidades permanente? Na verdade, em muitas cidades do mundo, os prefeitos se distanciaram de legendas partidárias. Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York, era independente, enquanto Boris Johnson, prefeito de Londres desde 2008, se descreve como ‘anarco-conservador’. Metade dos prefeitos de Kansas, um estado muito republicano, declara não pertencer a nenhum partido. A natureza do governo municipal e a necessidade de abraçar os setores público e privado empurram os prefeitos para longe de ideologias e para perto do pragmatismo. As cidades do mundo todo têm preocupações públicas comuns como mudança climática, imigração, comércio e interação, por isso, elas tendem a ser progressistas ao invés de reacionárias. Por necessidade, elas abraçam a diversidade e tolerância.

Quando surgiu seu interesse por cidades e governança? Meu interesse vem do fato de que ao longo dos anos nós estamos assistindo aos Estados-nações se tornarem cada vez mais disfuncionais na esfera internacional. Tenho também um interesse especial em democracia participativa [Barber tem um livro chamado Strong Democracy: Participatory Politics for a New Age, de 1984, sem tradução no Brasil]. Nos últimos dez anos eu e os grupos de pesquisa de que participo temos trabalhado mais com cidades em vez de nações e isso reorientou meu foco. Buscando instituições capazes de ajudar a regular e governar a anarquia mundial, tornou-se claro para mim que as cidades – que já cooperam passando por cima de fronteiras territoriais – eram colaboradores ideais. Um livro que originalmente era para ser sobre a governança em geral tornou-se um livro sobre cidades e governança global, especificamente.

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