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Os anos que vivemos taticamente

Falta de estratégia de longo prazo dos países ocidentais propiciou caos atual no Oriente Médio e outros conflitos que ameaçam a estabilidade global

Por Javier Solana*
3 nov 2014, 04h06

Vivemos uma ilusão. Durante anos, o mundo acreditou que a transição da unipolaridade para a multipolaridade aconteceria de maneira pacífica, ordenada e estável, e que os novos atores como China, Brasil e Turquia se adaptariam aos marcos multilaterais existentes de maneira natural e harmoniosa. Como estávamos enganados! Na verdade, como a transição em direção a multipolaridade avançou, a ordem internacional tornou-se cada vez mais instável e tensa. A crise financeira global de 2008 misturou incerteza e desconfiança, rompendo as principais tendências como a globalização. Mas o maior problema tem sido o fracasso dos países desenvolvidos – os arquitetos da ordem internacional pós II Guerra Mundial – em formular uma estratégia abrangente para enfrentar os desafios globais e gerenciar a transição para um novo sistema internacional.

A razão para este fracasso é simples: o Ocidente levou em consideração interesses táticos de curto prazo para impedir o desenvolvimento de uma visão estratégica a longo prazo. Essa obsessão com a tática afetou a governança em todos os níveis, das administrações locais a instituições supranacionais, permitindo que os atores principais operassem dentro de realidades descoordenadas, sem quaisquer objetivos compartilhados orientando suas tomadas de decisão.

Certamente, existem algumas exceções notáveis, devido a esforços orquestrados para consolidar uma visão estratégica construtiva. Por exemplo, a política ocidental produziu alguns progressos em direção a uma solução sobre o programa nuclear do Irã. Mas, em outras áreas, o pensamento estratégico ficou muito atrás. Na Ucrânia, por exemplo, o conflito tem exposto e aumentado a lacuna entre a Rússia e o Ocidente. Na Rússia pós-soviética, a luta para integrar a ordem internacional, juntamente com a sua rejeição de modernização, alimentou um nacionalismo revisionista baseado em esferas de influência.

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O Ocidente não estava preparado para forças globais retrocederem e procurarem por um futuro no passado. De qualquer forma, o Oriente Médio deve apropriar-se de soluções para os desafios que enfrenta; afinal, não há solução imposta do lado de fora que tenha funcionado até agora. A responsabilidade do resto do mundo é construir um cenário estável para tais esforços: um sistema internacional inclusivo, em que países respeitem as mesmas regras e normas. Na gestão da transição em direção à multipolaridade, o maior desafio do Ocidente encontra-se na Ásia – uma região que é simultaneamente dinâmica e orientada para o futuro e entravada por tensões históricas e divisores de fronteiras. Reconhecendo a profunda importância da Ásia para a nova ordem mundial, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou um plano estratégico para a região em 2012.

Mas os líderes ocidentais têm hesitado em integrar a China, o ator economicamente mais temível da Ásia, no sistema internacional. Na verdade, a última reunião do Fundo Monetário Internacional – que reconheceu a China como maior economia do mundo por paridade de poder de compra – terminou sem aumentar a fatia de votos da China. Para colocar isto em perspectiva, a China ficou com uma proporção de votos ligeiramente maior que a Itália, cuja economia tem um quinto do tamanho dela, e apenas um quarto da parcela de voto dos Estados Unidos.

Além disso, o Ocidente tem relegado o apoio para a criação e reforço de estruturas regionais de cooperação em áreas fundamentais como segurança a importância secundária. Ao contrário da Europa, as feridas da II Guerra Mundial da Ásia nunca foram curadas. Como resultado, disputas territoriais e reivindicações nacionalistas permanecem uma potente ameaça à estabilidade regional e global. Mas, para o Ocidente, colocar em prática a visão de longo prazo requer mais do que reconhecer o imperativo de tomada de decisões estratégicas; também exige esforços para revitalizar sistemas políticos nacionais polarizados e disfuncionais.

Nos Estados Unidos, não há dúvidas de que a falta de visão estratégica, demonstrada na política externa de Obama é, pelo menos, em parte, resultado de sua necessidade de navegar em um sistema imperfeito. Por sua vez, a União Europeia tem empregado políticas desfocadas para resolver seus desafios econômicos, sem antecipar – ou reconhecendo – as consequências sociais e políticas, incluindo a proliferação do sentimento anti-União Europeia. A abordagem tática dos estados-membros para os seus problemas particulares (muitas vezes definida por seu status como credor ou devedor) deixou a União Europeia desprovida de liderança de confiança e uma visão unificada. Uma abordagem mais estratégica se concentraria em impulsionar o crescimento em toda a UE, tais como o cumprimento das metas de estratégia da Europa 2020 para pesquisa, desenvolvimento e inovação e avançar a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento.

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As táticas são soluções de curto prazo que muitas vezes têm importantes consequências imprevistas, tornando-se impossível prever o tipo de mundo que irão gerar. A estratégia constitui um eixo diferente de ação, representando a estrutura de interdependência global e, portanto, como mudanças individuais podem afetar todo o sistema. Somente a movimentação em direção a este eixo da estratégia pode alcançar o mundo que queremos: aquele que é habitável, estável, livre e próspero.

*Javier Solana foi Alto Representante da União Europeia para Política Externa e Segurança, Secretário-geral da Otan e Ministro dos Negócios Estrangeiros da Espanha. Atualmente é Presidente do Centro de Economia Global e Geopolítica e Membro Honorário da Brookings Institution.

© Project Syndicate, 2014

(Tradução: Roseli Honório)

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