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Organizando a Paz no Oriente Médio

Ocidente deve usar todos os seus recursos diplomáticos para mediar um entendimento entre o Irã e a Arábia Saudita, principais patrocinadores da luta armada entre xiitas e sunitas

Por Da Redação
5 jul 2014, 10h01

Na famosa peça anti-guerra de Bertolt Brecht intitulada “Mãe Coragem e Seus Filhos”, um dos personagens diz: “Você sabe qual é o problema com a paz? Falta de organização.”

A peça tem como pano de fundo a Guerra dos Trinta Anos, que devastou a Europa na primeira metade do século XVII, terminando apenas com a Paz de Vestfália em 1648. A guerra começou como um conflito religioso entre protestantes e católicos, mas rapidamente se transformou em uma longa luta entre países e dinastias rivais, principalmente entre os Habsburgos e o Sacro Império Romano, de um lado, e a França do Cardeal Richelieu do outro.

É natural que alguns comparem o conflito atual entre sunitas e xiitas, que vem desgastando algumas regiões da Mesopotâmia e da Ásia Ocidental, a essa guerra, que causou uma quantidade massiva de mortes, pragas, destruição econômica e agitação social, entre outras coisas, em uma onda de caça às bruxas.

Meio século antes da explosão do conflito, houve, na verdade, uma tentativa de organizar a paz. O Imperador Carlos V assinou a Paz de Augsburg, em 1555, com base em um acordo no qual os Estados soberanos podiam escolher e adotar a versão do cristianismo que preferissem. Quando esse Tratado fracassou, começaram os massacres.

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Qual foi a “paz organizada” que precedeu a atual turbulência sangrenta no Iraque, na Síria e em outros países? A resposta depende de até onde recuamos.

Quando o Império Otomano caiu, as potências ocidentais lançaram um projeto de autoengrandecimento para redesenhar o mapa da região, instalando governos, criando dependências, estabelecendo esferas de influência e garantindo seu acesso a um suprimento de petróleo cada vez mais significativo. Em seguida, surgiu uma persistente tendência a julgar o comportamento dos países do Magreb ao Levante, de acordo com a sua propensão a criar ou não problemas diplomáticos (ou de outra índole) em torno da atitude de Israel para com a Palestina, e das afirmativas deste último de sua viabilidade como Estado independente. Também houve intervenções explícitas, desde a operação secreta de destituição do primeiro-ministro iraniano, democraticamente eleito, Mohammad Mossadegh, até a mais recente intervenção militar no Iraque, que custou a vida de mais de 250.000 de iraquianos.

No entanto, os países ocidentais têm sido relutantes em encarar a realidade subjacente da região, exposta em um relatório de 2002 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Os especialistas e políticos árabes que elaboraram o relatório chamaram a atenção para as conexões entre governo autoritário, economia fraca, desemprego elevado e política excessivamente confessional. Quanto mais ditatorial se tornou a política nessa região, mais jovens – privados de postos de trabalho e de liberdade de expressão – passaram a recorrer ao extremismo e ao islamismo violento, a perversão de um grande credo.

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E aqui estamos hoje, com a evidente, mas inadequada resposta para a pergunta: “e agora, o que você faria a respeito?”, idêntica àquela que um agricultor irlandês deu a um viajante que lhe pedia orientações: “Eu não começaria por aqui”.

Infelizmente, essa não é nem uma resposta, embora possa ser útil para aqueles que – como o ex-vice-presidente dos EUA, Dick Cheney – defendem uma repetição da história recente. Ao negar a realidade, os neoconservadores norte-americanos e britânicos aparentemente acreditam que os acontecimentos recentes justificam a sua opinião de que, se a guerra no Iraque tivesse se prolongado como desejavam, teria sido um sucesso.

Mas os neocons não estão totalmente equivocados. Como explicou muito bem a ex-secretária de estado dos EUA, Condoleezza Rice, os Estados Unidos perseguiram por muito tempo a “estabilidade a custa da democracia”; e, como consequência disso, não “alcançaram nenhuma das duas.”

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Trata-se de um argumento convincente para não abandonar um compromisso de longo prazo com a classe de valores pluralistas professados – entre outros – pelos autores do relatório de 2002. O Ocidente tem sido inconsistente em sua aplicação desses princípios, ocasionalmente tentou impô-los pela força (com consequências desastrosas) e falhou em utilizar efetivamente o dinheiro e os mecanismos concebidos para apoiá-los. Considere, por exemplo, os resultados lamentáveis dos acordos de comércio e cooperação da União Europeia em todo o Mediterrâneo.

O Ocidente deve usar todos os seus recursos diplomáticos para mediar um entendimento entre o Irã e a Arábia Saudita, principais patrocinadores da luta armada entre xiitas e sunitas, respectivamente. Ver a sua região em chamas não é de longe interesse de nenhum desses países. Eles precisam começar a restaurar as suas relações, uma possibilidade (recentemente adiada) que parecia real no mês de maio.

Com ajuda americana e turca, o Iraque deveria ser orientado na direção de um Estado federal, que reconheça as aspirações de curdos, sunitas e xiitas. Na Síria, o presidente Bashar Assad permanece em seu cargo, mas dificilmente no poder. O seu exército provavelmente está ganhando, mas a luta continua. No momento, a melhor perspectiva parece ser aquela descrita pelo historiador romano Tácito – “Criam um deserto, e chamam-lhe paz.”

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Há muito já passou o momento em que os implicados poderiam ter considerado a possibilidade de fazer uma intervenção militar eficaz. Mas, com o apoio do Conselho de Segurança da ONU, os esforços humanitários em todo o mundo deveriam ser mais extensos e concentrados, para que um alívio maior possa ser levado para os quase 11 milhões de refugiados sírios.

Finalmente, não devemos ignorar a toxicidade contínua do conflito não resolvido entre Israel e Palestina, que segue alimentando o extremismo político e levantando graves questões sobre o compromisso do Ocidente com os direitos humanos.

Os países fora dessa região enfrentam uma tarefa suplementar: precisam dissuadir os jovens de ir lutar na guerra civil do Islã. Esse é um problema para o meu próprio país, onde parece que não fizemos um bom trabalho, em algumas comunidades, ao incutir a compreensão e a aceitação dos valores que com frequência levaram os pais desses jovens para o Reino Unido, para começar.

A agenda para alcançar a paz verdadeira e duradoura é longa e complexa. É preciso organizar planos que levarão anos para ser executados. Se não começarmos agora, o fogo irá se espalhar – avivado pela política e pela religião – e não será apenas Nínive que será consumida por ele.

Chris Patten, último governador britânico de Hong Kong e ex-comissário da UE para assuntos exteriores, é chanceler da Universidade de Oxford.

© Project Syndicate, 2014

(Tradução: Roseli Honório)

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