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“Feridas psicológicas são as mais difíceis de curar”

Médico congolês especializou-se no atendimento a vítimas de estupro - uma arma de guerra na República Democrática do Congo

Por Gabriela Loureiro
25 ago 2013, 18h26

Ofuscado pelas crises em países como Egito, Síria e Mali, há um conflito internacional de dimensões monstruosas que já matou mais de cinco milhões de pessoas e deixa dezenas de milhares de vítimas de estupros, assassinatos e perseguições todo mês. Na República Democrática do Congo (RDC), país que já foi chamado de ‘capital mundial do estupro’ por uma relatora das Nações Unidas, o abuso sexual virou uma arma de guerra com o objetivo de dizimar aldeias e expulsar moradores de terras com recursos naturais visados por milícias e países vizinhos. O nível das atrocidades é aterrorizante a ponto de motivar uma ação em defesa do julgamento dos crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional. “O número de vítimas aumenta todos os anos e isso não é aceitável. Por que há tantas propostas para solucionar os problemas do povo congolês e se evita falar em sancionar os criminosos?”, questiona o advogado congolês Hamuli Rety, autor de uma declaração pedindo a instalação do tribunal, que já obteve o apoio de várias personalidades femininas, como a franco-colombiana Ingrid Betancourt, a mais célebre refém das Farc, a narcoguerrilha colombiana.

Rety chama a atenção para a situação das congolesas. “As mulheres do Congo são consideradas coisas, não são mais consideradas humanas. Em alguns parques africanos, nos quais os turistas passeiam em jeeps para ver os animais, agora, há políticos, atores e jovens que, para dar uma impressão de que têm bom coração, também fazem um tour para ver as mulheres congolesas vítimas de violação e tirar fotos com elas. Não é sério”.

O ginecologista Denis Mukwege dirige um hospital que atende essas mulheres. Ele reconstrói os genitais das vítimas de estupro, mas reconhece que seu trabalho tem um alcance limitado. “Como cirurgião, eu trato feridas físicas, frequentemente com sucesso, graças à evolução da ciência e o profissionalismo da minha equipe. Mas as feridas psicológicas são as mais difíceis de curar e, portanto, é necessário uma atenção especial para apoiar psicologicamente as sobreviventes e reintegrá-las sócio e economicamente”.

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Mukwege diz já ter atendido mais de 40 000 mulheres estupradas. O hospital que dirige tem 350 leitos e fica na cidade de Bukavu, capital da província de Kivu do Sul, uma das regiões em que mais ocorrem ataques de grupos armados responsáveis por numerosos abusos de direitos humanos contra a população civil. “Algumas mulheres, e até crianças, chegam ao hospital em condições extremamente críticas com feridas ginecológicas graves. Nós oferecemos assistência médica e apoio psicológico”.

O médico, que antes dirigia uma maternidade, decidiu se especializar na cirurgia de reparação depois de atender uma paciente que havia sido estuprada e baleada nos genitais. O ataque ocorreu em 1999. Depois dessa paciente, vieram muitas outras, em situações ainda piores. Mukwege então percebeu que não se tratava de atos isolados, mas de uma estratégia de guerra com o fim de expulsar comunidades de regiões ricas em recursos naturais. Isso porque não apenas a mulher estuprada tem sua integridade prejudicada, mas também seu marido se vê humilhado e a família acaba deixando sua comunidade. “Além disso, as crianças que nascem de estupros sofrem um grande problema de identidade, já que eles não têm qualquer reconhecimento ou status legal”, afirma. “Na República Democrática do Congo, o estupro com violência extrema tem sido usado de uma forma sistemática não apenas para destruir a mulher, mas também para afetar e humilhar dramaticamente famílias e comunidades. Essa arma de guerra impede que se alcance uma paz duradoura. Isso deve ter fim”.

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Mukwege começou a trabalhar com as vítimas de estupro no período em que a ex-colônia belga estava afundada em uma guerra civil que envolveu vários países vizinhos. A assinatura de um acordo de paz entre o governo e os principais grupos rebeldes, no final de 2002, não significou o fim das tensões no país. Ao contrário, houve uma nova escalada nos confrontos foi verificada a partir de 2008. O médico, é claro, apoia a criação do TPI para a República Democrática do Congo. “O povo congolês precisa de paz e justiça. A cultura da impunidade na RDC destruiu os esforços de estabelecer a lei e a confiança da população em suas instituições, levando a uma erosão da moralidade pública”, analisa.

A ideia é utilizar a infraestrutura dos tribunais de Ruanda e da antiga Iugoslávia, que serão encerrados no final de 2014, para a Corte sobre os crimes de guerra cometidos no país entre 1993 e 2003. No momento, cartas defendendo a instalação do tribunal estão sendo enviadas para autoridades de países que integram o Conselho de Segurança da ONU – que deverá decidir sobre a questão.

O advogado Rety cobra apoio especialmente da potência EUA. “Veja o Barack Obama, que ganhou o Nobel da Paz em 2009 por esforços que deveria fazer pela paz. Não é possível que ele termine seu segundo mandato como se essas congolesas não existissem. Se ele fizer isso, será que ele terá honrado o status de Nobel da Paz que ganhou?”.

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‘A mulher estuprada não mantém os olhos na sua direção’

Perseguição – Mukwege também viaja pelo mundo para denunciar os abusos cometidos no Congo. No ano passado, em um discurso na ONU, criticou a falta de ação da comunidade internacional. “Eu gostaria de dizer também ‘eu tenho orgulho de participar da comunidade internacional que vocês representam aqui’, mas não posso dizer isso. Como poderia falar isso para vocês quando a comunidade internacional mostrou medo e falta de coragem durante esses 16 anos na RDC?”, disse. Um mês depois, ele sofreu uma tentativa de homicídio em sua casa, e sua família foi feita de refém. O seu segurança pessoal morreu tentando protegê-lo, e ele saiu do episódio ferido.

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Assustado, o médico mudou-se com a família para a Bélgica. As congolesas não aceitaram e se organizaram para fazer rondas de 20 mulheres, 24 horas por dia, acompanhando Mukwege para garantir sua segurança. Ele cedeu. “As mulheres congolesas fizeram uma mobilização sem precedentes e exigiram meu retorno. Isso me deu forças para voltar ao Hospital Panzi e continuar meu trabalho”, disse. “Sou um cidadão comprometido e acredito que todos têm deveres e o potencial para trazer uma mudança positiva na comunidade. Não é preciso ser herói para se importar com os outros”.

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