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Tunísia: berço da Primavera Árabe vai às urnas pela 1ª vez

Mais de nove meses depois de forçar a renúncia do seu ditador, Zine El Abidine Ben Ali, o país dá os primeiros passos rumo a um inédito processo democrático

Por Cecília Araújo
23 out 2011, 08h20

“A Tunísia serviu de estopim para as revoltas islâmicas, e agora vai funcionar como um laboratório democrático para os outros países”

Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas

A Primavera Árabe, onda de revoltas populares que tomou conta de países do Oriente Médio e norte da África, nasceu na Tunísia, em dezembro do ano passado. Hoje, mais de nove meses depois de atingir seu grande objetivo – a queda do ditador Zine El Abidine Ben Ali – o país é, mais uma vez, o berço de um novo tempo para essas nações islâmicas: o da democracia. As eleições deste domingo são as primeiras realizadas na região. Estima-se que cerca de 7,3 milhões de eleitores compareçam às urnas para escolher os membros de uma Assembleia Constituinte que terá a missão de supervisionar o governo, elaborar uma nova Constituição e agendar as eleições gerais. Com um total de 12 milhões de habitantes, a Tunísia é um país pequeno, sem relevância econômica nem riqueza em petróleo. Mas, desde o início das manifestações do mundo árabe, ganhou grande importância política para toda a região e serviu de exemplo. “Antes da queda de Ben Ali, nunca nenhum governo da região tinha sido derrubado por uma manifestação popular. A Tunísia serviu de estopim para as revoltas islâmicas, e agora vai funcionar como um laboratório democrático para os outros países”, analisa ao site de VEJA Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Por não ser assolada por divisões regionais, étnicas nem religiosas, o país é historicamente menos propenso a conflitos internos – ao contrário de Líbia, Síria e Egito -, o que deve permitir uma transição política mais ágil. “No passado, a Tunísia se tornou rapidamente um reino independente. Hoje, é um país árabe, sunita e estável”, explica Santoro. Entre as renúncias de Ben Ali e do egípcio Hosni Mubarak, por exemplo, passaram-se apenas poucas semanas. Porém, enquanto a Tunísia já abre suas eleições democráticas neste domingo, o Egito vai precisar esperar pelo menos até o fim do ano, ou mais: as autoridades já deixaram clara a intenção de permanecer no poder até 2013. “Se o calendário democrático da Tunísia der certo, por outro lado, a consequência para os outros países será positiva. O processo deve se acelerar”, afirma o professor. Cerca de 11.000 candidatos, de mais de 100 partidos, concorrem às 217 vagas para membros da futura assembleia da Tunísia. Segundo Santoro, é normal que haja uma fragmentação partidária após o fim de uma ditadura, com o surgimento de centenas de siglas. O processo de seleção natural vem com o tempo: a maioria fracassa e sobra apenas meia dúzia de partidos, que de fato, vão se consolidar. “A democracia só se torna estável no longo prazo, enquanto no curto prazo tende a ser mais confusa. Isso vale para todos.”

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Cronologia – Da revolução às eleições na Tunísia

No dia 17 de dezembro de 2010, um jovem ateou fogo em si mesmo, na cidade de Sidi Bouzid, em protesto por ser impedido pela polícia de vender verduras em uma banca de rua irregular. O caso deflagrou uma onda de protestos pelo país contra a ditadura de Zine El Abidine Ben Ali, que menos de um mês depois deixava o poder, abrindo caminho para a democracia:

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  • 14 de janeiro O ditador Zine El Abidine Ben Ali deixa o poder depois de 23 anos e foge para a Arábia Saudita. O então primeiro-ministro, Mohamed Ghannouchi, assume interinamente suas funções.

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  • 15 de janeiro Fouad Mebazaa, o então presidente da Câmara dos Deputados, se torna o presidente interino da Tunísia. Ben Ali e sua família são acolhidos pelo governo saudita.

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  • 27 de fevereiro Depois da renúncia de uma série de ministros em meio a protestos da população, o premiê, Mohamed Ghannouchi, também renuncia. Béji Caïd Essebsi assume o cargo.

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  • 3 de março O presidente, Fouad Mebazza, anuncia eleições para 24 de julho, a fim de formar um “conselho constituinte”. Mas o pleito acaba sendo adiado para outubro.

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  • 7 de março Caïd Essebsi anuncia a composição de seu governo provisório, sem a presença de nenhum membro do regime de Ben Ali. As forças de segurança do ditador são extintas.

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  • 9 de março O governo interino extingue a polícia secreta da Tunísia e a antiga sigla do regime de Ben Ali, o Partido Democrático Constitucional – uma das principais conquistas dos manifestantes.

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  • 11 de abril É aprovada a nova lei eleitoral, considerada uma das mais democráticas do mundo: tem comissão eleitoral independente, paridade entre homens e mulheres e voto proporcional integral.
  • 7 de maio É criada a Instância Superior Independente para as Eleições (Isie), a fim de preservar os avanços da Revolução. Ela é responsável por atualizar as listas eleitorais e lançar campanhas de sensibilização.
  • 20 de junho Ben Ali e sua mulher, Leila Trabelsi, são condenados a 35 anos de prisão e a pagar uma multa de 45 milhões de euros por desvio de verbas.

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  • 4 de julho O ex-ditador é novamente condenado, desta vez a 15 anos e meio de prisão e a pagar 54.000 euros em multas por posse de armas, drogas e objetos arqueológicos.

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  • 28 de julho Ben Ali recebe sua terceira condenação à revelia, com uma pena de 16 anos de prisão por corrupção e fraude imobiliária. Sua filha, Nesrine, e seu genro, Sakhr Materi, também são punidos.

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  • De 1º a 21 de outubro Começam as campanhas para as eleições constituintes na Tunísia, a serem realizadas no dia 23 de outubro. Tunisianos que moram no exterior já começam a votar.

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  • 23 de outubro Os tunisianos escolhem, entre 11.000 candidatos, os 217 membros da futura Assembleia Constituinte, encarregada de redigir a nova Constituição, supervisionar o governo e agendar as eleições gerais.

Os concorrentes – Todos os candidatos tunisianos declaram os mesmos valores de liberdade, democracia e justiça social. Porém, existe o receio de que o partido islamita Ennahda, liderado por Rachid Ghannouchi e duramente reprimido durante o regime de Ben Ali, tome o poder e instaure um governo ultraconservador. A sigla é considerada a grande favorita nas eleições deste domingo: segundo as pesquisas, tem aprovação de 20% a 35% dos eleitores. Frente aos questionamentos sobre um possível extremismo, vem divulgando uma imagem de moderado e uma proposta de governo na qual defende que “todos serão representados”. Os membros do Ennahda ressaltam ser a favor da democracia, a exemplo da aparentemente estável Turquia, governada pelo premiê islâmico moderado, Tayyip Erdogan. Historicamente, o movimento fundamentalista nunca foi muito forte na Tunísia, ao contrário do Egito e outros países da região. “Durante seu governo, Ben Ali impediu a existência de qualquer movimento religioso, e isso explica o temor de que haja um crescimento da influência da religião na política da Tunísia. Porém, não creio que haja risco da instauração de um governo autoritário islâmico”, opina Santoro.

O partido Ennahda, liderado por Rachid Ghannouchi, é o grande favorito nas eleições tunisianas
O partido Ennahda, liderado por Rachid Ghannouchi, é o grande favorito nas eleições tunisianas (VEJA)

Além de a imprensa ser diversificada no país, a classe média também é ampla, e a elite, secularizada, com uma forte influência francesa na política. Muitos líderes foram educados na França e sabem como funciona uma sociedade ocidental, com Parlamento e Constituição. “É provável que ali haja um equilíbrio entre religião e laicidade. No máximo, os islâmicos devem ganhar uma maioria no Parlamento”, prevê o especialista. A principal alternativa frente ao Ennahda é o Partido Democrata Progressista (PDP), de centro-esquerda, liderado por Ahmed Néjib Chebbi, que também enfrentou diretamente Ben Ali. O partido Ettakatol (Fórum), próximo ao Socialista francês, conduzido por Mustafah Ben Jaafar, divide as expectativas para o segundo lugar. Além deles, destacam-se ainda o Polo Democrata Modernista, Ettajdid (ex-comunista), que reúne cinco pequenas formações em torno de um projeto laico; o Partido Comunista dos Operários Tunisianos (PCOT, extrema-esquerda), que é conduzido por Radia Nasraoui, renomada advogada, casada com o líder Hamma Hammami e uma das poucas mulheres que lideram uma lista, apesar da obrigatória paridade entre homens e mulheres.

Risco de fraude – Mas nem tudo são flores nas eleições da Tunísia. Os mesmos manifestantes que tomaram as ruas para derrubar Ben Ali já prometeram novos protestos em caso de fraude. “Se houver falsificação flagrante dos resultados, juntaremos as forças da revolução para proteger a vontade do povo”, anunciou Ghannouchi, chefe do Ennahda. A União Europeia (UE) decidiu enviar uma missão de observadores eleitorais ao país para supervisionar a votação e a contagem de votos, a convite das autoridades locais. Além disso, a própria sociedade civil se organizou para vigiar o processo eleitoral. Isso porque, mesmo com o fim da ditadura, os tunisianos ainda carregam o peso dessa repressão. O partido de Ben Ali era influente, e sua estrutura ainda está de pé. “Há o perigo de pessoas incrustradas na máquina do estado intimidar os eleitores e promover perturbações até desestabilizar as eleições. É importante o monitoramento para dar legibilidade ao pleito”, ressalta Santoro. A votação é organizada por uma comissão independente que atua no lugar do Ministério do Interior, desqualificado pela fraude eleitoral que praticou durante anos. Ao ser eleita, a nova Assembleia terá como tarefa principal criar uma nova Constituição – a terceira, depois das de 1861 e 1959. Ela deve eleger, também, um presidente provisório que designará um primeiro-ministro para a liderança de um governo de transição, que permanecerá no cargo até a realização das eleições gerais, que devem ocorrer no próximo ano.

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