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Para mulheres na China, o progresso traz riscos

Progresso chinês dá mais liberdade às mulheres, mas antigas tradições voltam a colocá-las em risco

Por The International Herald Tribune
27 nov 2010, 09h57

O concubinato, prática declarada ilegal pelos comunistas logo que assumiram o poder em 1949, surgiu novamente

A pergunta que colocava em risco as oportunidades de trabalho de Angel Feng sempre vinha por último nas entrevistas. Fluente em chinês, inglês, francês e japonês, formada em administração na França, 26 anos, fez entrevistas de trabalho entre os meses de janeiro e abril em meia dúzia de empresas em Pequim, na esperança de conseguir o primeiro emprego no setor privado, onde os salários são mais altos.

“O chefe fez diversas perguntas sobre minhas qualificações, e depois comenta: ‘Vejo que você acabou de casar. Quando pretende ter filhos?’ Sempre é a última das perguntas. Sempre digo que não tenho intenção, pelo menos não nos próximos cinco anos, mas eles não acreditam”, disse Feng.

Três décadas após a China se embarcar nas deslumbrantes reformas econômicas, muita coisa mudou para as mulheres. Diferente de suas mães, cujas vidas de trabalhadoras eram determinadas pelo estado, as mulheres de hoje podem escolher seus próprios caminhos. As camponesas não são mais forçadas a trabalhar na comunidade; mulheres da cidade não são obrigadas a trabalhar no mesmo emprego pelo resto de suas vidas nem precisam mais pedir permissão para casar, ainda que precisem de permissão para ter filhos.

Junto com a ampliação da liberdade veio o risco, à medida que as estruturas de uma era socialista se desmancham e tradições culturais poderosas sobre homens e mulheres, há tempos inativas por conta do apoio oficial comunista aos direitos das mulheres, retornam com força. Muitos empregadores preferem não contratar mulheres numa economia onde há grande oferta de mão de obra e mulheres são sinônimo de custos extras no que diz respeito à maternidade e despesas com o nascimento de bebês.

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O resultado é que até mesmo candidatas altamente qualificadas como Feng podem ter dificuldades em encontrar uma posição. Preocupações sobre como mergulhar nesse mercado estão alimentando uma forte crise de identidade entre as mulheres da China.

“O maior problema que encaramos é a confusão sobre quem somos e o que devemos ser”, conta a jornalista Qin Liwen. “Será que devo ser uma mulher forte, fazer dinheiro e ter uma carreira, podendo até me tornar rica, mas arriscar não encontrar um marido ou ter um filho? Ou será que devo casar e ser dona de casa e ajudar meu marido a educar meus filhos? Ou então será que devo ainda ser como uma ‘raposa’ – o tipo de mulher que casa com marido rico, dirige uma BMW, mas tem de lidar com as suas amantes?”

Feng conseguiu emprego numa empresa que promove marcas chinesas.

“Era um lugar muito ruim”, conta ela. Funcionários foram demitidos imediatamente após as promoções para reduzir custos. A jornada de trabalho era extensa. Uma colega que sofreu um aborto foi chamada de volta ao trabalho menos de três dias depois. O salário mensal de Feng era de cerca de 745 dólares, sem benefícios.

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Em julho ela pediu demissão – com a segurança de um cargo numa organização “quase estatal” administrada pelo Ministério da Educação.

O pagamento é mais baixo, cerca de 625 dólares por mês, mas o almoço é gratuito no refeitório do ministério e ela tem benefícios como os da época socialista, incluindo auxílio moradia. O horário é fixo, das 8h30 às 17h, cinco dias por semana. O mais importante é que o empregador, a China Education Association for International Exchange, não faz objeções a funcionárias que optem por ter filhos, e dão pelo menos 90 dias de licença maternidade, pagos integralmente.

O trabalho pode ser “um tanto entediante”, mas ela, assim como outras, fez sua escolha. “O serviço público é popular entre as mulheres porque os direitos são mais protegidos”, disse Feng Yuan, chefe do Centro de Estudos sobre Mulheres da Universidade Shantou.

Guo Jianmei, diretora do Centro de Serviço e Aconselhamento Legal à Mulher de Pequim, insiste que, apesar de tudo, as mulheres de hoje estão numa posição melhor do que há três décadas.

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“Elas sabem muito mais sobre seus direitos”, disse ela. “São mais bem educadas. Para aquelas com espírito competitivo, existe agora um mundo de oportunidades disponível aqui, seja para executivas, cientistas, fazendeiras ou até mesmo líderes políticas. De fato houve grandes mudanças.”

Os direitos das mulheres são bem protegidos, pelo menos no papel. Em 2005, o governo aprovou a emenda da Lei de Proteção dos Direitos e Interesses da Mulher, conhecido como Constituição das Mulheres, para tornar a igualdade entre os gêneros uma política explícita do estado. Também declarou ilegal, pela primeira vez, o assédio sexual.

Ainda assim, a discriminação é grande. São poucas as mulheres que ousam processar seus empregadores por práticas ilegais de admissão, demissão por gravidez ou licença maternidade e até mesmo assédio sexual, dizem os especialistas. As empresas normalmente especificam sexo, idade e aparência física nas ofertas de emprego.

Existem brechas na lei. Um dos grandes problemas, disse Feng Yuan (que não tem nenhum parentesco ou relação com Angel Feng), é que não existe definição para discriminação de gênero. A lei também mantém ainda o requisito de que mulheres se aposentem cinco anos mais cedo do que homens que possuam os mesmo cargos, reduzindo dessa forma os ganhos da aposentadoria.

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Em 2008, 67,5% de mulheres chinesas maiores de 15 anos estavam empregadas, de acordo com Yang Juhua, do Centro de Estudos de Desenvolvimento e População da Universidade da China, mencionando estatísticas do Banco Mundial. Houve uma queda em relação aos dados mais recentes do governo chinês, de 2000, mostrando que 71,52% de mulheres entre 16 e 54 anos estavam empregadas, comparado a 82,47% de homens da mesma faixa etária. Yang calcula que as mulheres ganham 63,5% dos salários de homens.

Ainda assim existem muitas histórias isoladas de sucesso, conseguidas através de muito trabalho – e um pouco de sorte. Shi Zaihong é uma delas. Nascida de família pobre rural, na província central de Anhui, Shi, que agora tem 41 anos, veio para Pequim em 1987 para trabalhar como babá. Atualmente, junto com o marido, que tem um pequeno negócio de propaganda, ela comprou um apartamento próximo a Pequim – uma grande conquista para uma trabalhadora imigrante com apenas cinco anos de educação.

Os olhos de Shi brilham ao falar sobre o acúmulo de sua riqueza, muito distante do que sua mãe conseguia poupar na agricultura. “Aproveitei cada oportunidade que tive, sempre trabalhei duro”, diz ela. “As coisas vão bem, muito bem.”

Mãe de um garoto de 16 anos e de uma menina de 3, ela pode agora solicitar que os filhos se juntem a ela legalmente, pois ter um imóvel próprio lhe garante esse direito, conta ela. As crianças sempre moraram com os avós, num vilarejo nas montanhas com cerca de 300 pessoas. “Ter que deixar seus filhos para trás é a coisa mais difícil como imigrante”, comenta.

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Já Liu Yan, de 42 anos, teve uma vida um pouco diferente. Filha de um ator e de uma cantora de ópera da província de Sichuan, no sudoeste, ela trabalhou na primeira operadora turística privada da China e agora é uma consultora bem sucedida. Sofisticada e antenada, ela é especialista em montar equipes e tocar projetos. Divorciada, tem uma filha de 10 anos.

“Sempre fui muito livre e direta durante toda a minha vida”, conta ela. Mas “minha família sempre diz que isso foi burrice. Não é a maneira que você geralmente pode agir por aqui.” Ela chegou a conclusão de que as chances de casar novamente estão distantes.

“A tradição voltou com força, mas nem sempre é uma coisa boa”, diz ela. “Com os homens chineses, existe uma linha que não se pode cruzar. Eles acham que você tem que respeitar. Mas a maioria deles não me acha feminina mesmo. Eles gostam de jovens. Eles acham que uma mulher é bonita quando ela é doce.”

As mulheres com melhor condição de vida na China, conta ela, precisam tolerar as várias mulheres do marido. O concubinato, prática declarada ilegal pelos comunistas logo que assumiram o poder em 1949, surgiu novamente.

“Muitas mulheres sabem que mais cedo ou mais tarde vai acontecer”, diz ela. “Os homens são poderosos. Mulheres são frágeis e têm muito a perder. Mas eu quero ser feliz, nunca aceitaria isso.”

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