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Os 100 dias de solidão da Venezuela

Ex-ministro chileno Andrés Velasco critica a omissão dos países latino-americanos em relação aos conflitos na Venezuela e destaca a fragilidade das instituições democráticas na região

Por Andrés Velasco
2 mar 2014, 15h03

Quando a violência irrompeu na Ucrânia e os manifestantes começaram a morrer nas mãos de agentes do governo, a União Europeia ameaçou sanções contra funcionários ucranianos responsáveis pela “violência e força excessiva.” O presidente Viktor Yanukovich fugiu de Kiev deixando para trás um zoológico particular com porcos e cabras exóticos – e também os ministros de relações exteriores da Alemanha, França e Polônia, que estavam na cidade, tentando construir um acordo para o fim da violência.

Mas quando violência deflagrou – quase que simultaneamente – na Venezuela e os manifestantes começaram a morrer nas mãos de agentes do governo, a Organização dos Estados americanos (OEA) levantou a voz para anunciar que, pasmem, não levantaria a voz. Competia à Venezuela resolver a situação, afirmou a OEA. Ministros das relações exteriores de outros países latino-americanos estão longe de Caracas – certamente sem denunciar a repressão e exigir o fim da violência. Enquanto isso, a contagem de corpos continua a subir.

O contraste realça o que todo mundo já sabe: as instituições regionais da América Latina são frágeis – ainda mais que na Europa. Mas também revela outra coisa: uma lógica moralmente corrupta que faz com que governos e líderes permaneçam em silêncio diante da agressão, repressão e até mesmo da morte – porque falar qualquer coisa a respeito seria equivalente a um ato de “intervenção” em assuntos internos de outro país.

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Não foi sempre assim. Não faz muito tempo, na América Latina, a vida e a liberdade eram consideradas direitos universais, a serem defendidas apesar das fronteiras nacionais.

Meu pai foi um advogado chileno e ativista dos direitos humanos. Ele e a nossa família foram expulsos do país pelo general Augusto Pinochet. A minha adolescência e início da idade adulta foram vividas no exílio, compartilhando esperanças e medos com outros expatriados do Chile, Argentina, Brasil e Uruguai. Nenhum de nós – e ninguém da esquerda latino-americana – duvidou por um momento que a defesa dos direitos humanos era responsabilidade de todos, e que a comunidade internacional deveria punir os governos que torturaram e mataram o seu próprio povo.

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No Chile de Pinochet ou na Argentina do General Jorge Rafael Videla, qualquer pessoa que se queixasse de violência patrocinada pelo governo era pintada como um membro de uma conspiração comunista internacional. Hoje, qualquer pessoa que se queixe sobre violência na Venezuela é um fascista e um lacaio do império norte-americano, de acordo com o presidente Nicolás Maduro. Tudo mudou, no entanto, tudo permanece igual.

Sim, a situação na Venezuela deve ser resolvida pelos venezuelanos. O problema é que alguns venezuelanos, hoje, não podem marchar pacificamente nas ruas sem correr risco de morrer. Outros não podem falar livremente com seus compatriotas porque todas as redes de televisão que poderiam divulgar suas palavras têm sido reprimidas e tiradas do ar. Além disso, muitos venezuelanos não têm certeza de que seus direitos serão respeitados. Os mandatos expiraram para o procurador-geral, os membros da comissão nacional eleitoral e a suprema corte, mas nenhum sucessor foi nomeado porque Maduro não está disposto a negociar com a oposição e não possui os dois terços de maioria no congresso para nomear seus próprios escolhidos.

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Não há nada mais importante para o povo venezuelano que decidir seu próprio destino, mas os meios democráticos para isso lhe estão sendo negados. Com efeito, um dos principais líderes da oposição, Leopoldo López, foi preso sob a acusação ridícula de “incitamento ao crime.”.

Seria absurdo dizer que os manifestantes ucranianos estejam felizes em enfrentar a tropa de choque sem qualquer solidariedade externa ou de apoio. E é tão absurdo dizer o mesmo aos manifestantes venezuelanos. Nestas circunstâncias, o princípio da autodeterminação dos povos, tão amado pelos ministérios das relações exteriores de toda parte, torna-se um slogan vazio.

Talvez a mais triste de todas as reações estrangeiras veio da Federação de estudantes da Universidade do Chile, que conduziu protestos estudantis exigindo melhor educação no Chile. Suas palavras sobre a Venezuela estavam carregadas de linguagem stalinista da década de1950, condenando o país vizinho por “defender a velha ordem” e “desviar do caminho que o povo havia escolhido”.

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O problema com este argumento (se é que se pode chamar assim) é que “as pessoas” não falam com uma só voz, nem suas declarações caem do céu, perfeitamente formadas. Para descobrir o que as pessoas realmente querem e responder adequadamente a elas, as democracias têm de ter procedimentos, garantias constitucionais e direitos individuais. Quando essas condições são espezinhadas, como foram na Venezuela, as pessoas não podem falar livremente, nem ao menos escolher seu próprio caminho.

É igualmente ingênuo argumentar que as ações de Maduro devem ser legitimadas porque ele chegou ao poder por meio de uma eleição. Um líder democraticamente eleito mantém legitimidade apenas na medida em que ele ou ela se comporta democraticamente.

Como o professor Hector Schamis, da Universidade de Georgetown, recentemente recordou, António de Oliveira Salazar, em Portugal, Alfredo Stroessner, no Paraguai, e Suharto, na Indonésia, alcançaram o poder por meio de eleições. No entanto, nenhum livro de história lhes confere base democrática. Yanukovich também ganhou uma eleição, mas ele será lembrado principalmente pelo derramamento de sangue que desencadeou, a falência que agora enfrenta a economia da Ucrânia, e, claro, seu zoológico particular repleto de Ferraris.

Venezuelanos, como os ucranianos, devem saber que não estão sós. Sua luta pelos direitos democráticos é a luta de todos. O povo na América Latina sabe disso, mesmo que seus líderes não estejam sempre dispostos a dizê-lo abertamente.

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Andrés Velasco é ex-ministro das finanças do Chile e professor da Universidade de Columbia

© Project Syndicate, 2014

(Tradução: Roseli Honório)

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