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O gênio e a perversidade: é possível separar a obra dos erros do autor?

Novos detalhes sobre a vida do filósofo Martin Heidegger, do crítico literário Paul de Man e do cineasta Woody Allen reacendem inquietação: é possível apreciar o trabalho de uma personalidade quando se toma conhecimento de seus atos?

Por Jean-Philip Struck e Diego Braga Norte
30 mar 2014, 17h29

O ano de 1987 foi devastador para as reputações de Martin Heidegger e Paul de Man. O livro ‘Heidegger e o Nazismo’, de Victor Farias, mostrou a profunda ligação do filósofo alemão, um dos mais influentes do século XX, com o movimento sanguinário de Adolf Hitler, ao passo que uma coletânea de artigos de jornal escritos durante a II Guerra desnudou a maneira como de Man, uma estrela global dos estudos literários, havia destilado veneno antissemita durante a II Guerra, em sua Bélgica natal. O desmascaramento, contudo, ainda não estava completo. Em 2014, coincidentemente, novas publicações ampliam a mancha sobre as reputações de ambos – ao mesmo tempo em que reacendem a antiga discussão sobre os limites entre a vida e a obra de artistas e intelectuais. É uma discussão que não toca apenas figuras eruditas como Heidegger e Paul de Man, mas também celebridades como o cineasta Woody Allen, que foi acusado de abusar sexualmente da filha adotiva e com isso teve não apenas seu caráter, mas o próprio valor de seus filmes posto em questão.

O “caso Heidegger” foi reaberto pela publicação na Alemanha, há pouco mais de uma semana, dos ‘Cadernos Negros’ – quase 1 300 páginas de uma espécie de “diário intelectual” redigido entre as décadas de 1930 e 1940 e mantido inédito até agora por ordem expressa do seu testamento. A acusação contra o filósofo já tinha provas robustas: o fato de que durante um ano, logo depois da ascensão de Hitler ao poder, ele ocupou o cargo de reitor da universidade de Freiburg (no qual fez alguns discursos marcantes e se envolveu nas formas mais baixas de política universitária, denunciando colegas que não se mostravam suficientemente identificados com o novo regime), e o seu silêncio ultrajante no pós-guerra, em face de todos os crimes perpetrados pelo nazismo. Os ‘Cadernos Negros’ mostram como inquietações com a força do “judaismo mundial” – um conceito diretamente derivado dos infames Protocolos dos Sábios de Sion, sobre uma conspiração judaica para conquistar o mundo – nutriam as reflexões do autor. Segundo um artigo publicado por Peter Trawny, editor dos ‘Cadernos Negros’, pouco antes da chegada do livro às prateleiras, Heidegger não era imune ao preconceito pessoal contra os judeus, mas suas anotações vão em outra direção. Elas fazem do judaismo, ao lado do liberalismo, do capitalismo e da democracia, um dos motores de uma modernidade que Heidegger julgava vulgar e desprezava. Este seria o grande escândalo dos Cadernos Negros – a transformação do antissemitismo, ainda que não exatamente nos termos de Hitler e seus asseclas, em matéria de filosofia. “Heidegger não apenas encontrou esse ideário antissemita pelo caminho, ele o processou filosoficamente, ele falhou em imunizar seu pensamento contra essas tendências”, disse Trawny numa entrevista ao jornal inglês The Guardian.

Quanto a Paul de Man, sua colaboração com o Nazismo foi ainda mais desabusada. Ele tinha 21 anos quando as tropas alemãs invadiram a bélgica. Começou, então, a escrever para o maior jornal do país, o Le Soir, tomado pelas autoridades de ocupação, artigos que eram pura propaganda, com seus elogios à cultura alemã e seus ataques a uma França “débil” e aos judeus “degenerados”. Quando esses fatos vieram à tona, nos anos 80, os admiradores de de Man – que havia conquistado uma reputação brilhante em universidades americanas de primeira linha como Yale e Cornell – se agarraram à esperança de que eles pudessem ser encarados tão somente como um erro de juventude. A biografia ‘A Vida Dupla de Paul de Man’, escrita por Evelyn Barish, mostra o contrário. Primeiro, de Man nunca se arrependeu do que havia escrito. Ele só deixou seu emprego no Le Soir porque tentou dar um golpe no editor do jornal e acabou demitido. Depois da guerra, ele foi investigado pela colaboração com os nazistas – mas teria escapado da prisão apenas por ser uma figura menor. Ele então fundou uma editora, que apenas serviu de fachada para que arrancasse dinheiro da família e de amigos (inclusive sua velha babá), e armasse as mais diversas falcatruas e falsificações. Processado criminalmente, ele fugiu para Nova York. Quando sua mulher foi procurá-lo nos Estados Unidos com os filhos do casal, ele a manda para Buenos Aires, com a promessa de lhe enviar ajuda financeira. O único cheque que jamais chegou às mãos de Anne, de 250 dólares, foi devolvido pelo banco. Enquanto isso, de Man se casava com outra mulher, que só muito mais tarde descobriria que o marido nunca havia se divorciado e era, portanto, um bígamo.

“Temos o direito de esperar decência comum até mesmo de um poeta”, disse certa vez o escritor George Orwell. De Man não era poeta – e muito menos decente. O inventário de mentiras compilado por Evelyn Barish não se encerra aí – ele fraudou até mesmo seus registros acadêmicos para obter um emprego em Harvard. Mas é possível dizer que seus malfeitos invalidam o que ele escreveu? Para o ensaísta americano Louis Menand, que resenhou a biografia na revista The New Yorker, a resposta é dúbia. Segundo Menand, o legado do crítico belga é tão somente o de um método ultra-rigoroso de leitura, atento para a diferença entre “as formas de significado retórica e gramatical”. “Você pode achar esse tipo de crítica pedante ou desinteressante, mas não há nada de escandaloso nele”, conclui o resenhista.

Que as pessoas são capazes de julgar o mérito estético ou intelectual de uma obra de maneira autônoma, é um fato. Como escreveu a professora-assistente de Psicologia da Universidade de Cornell, Peggy Drexler, em um texto para a revista Time sobre a controvérsia recente em torno de Woody Allen, “quando assistimos a um filme ou lemos um livro, nós estamos procurando entretenimento e cultura, nós não estamos apoiando a conduta como ser humano de quem realizou a obra”. De fato, a história da arte está repleta de canalhas que têm seus crimes relevados, porque o gênio de seus trabalhos se impõe. (Continue lendo o texto).

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Quando a excelência de um trabalho não é universalmente reconhecida, contudo, traços da personalidade do autor podem interferir na avaliação que se faz dele. Um estudo de psicologia conduzido em 2010 e relatado pelo crítico inglês Brian Sherwin ilustra esse fato. Segundo Sherwin, um grupo de estudantes foi apresentado a dois conjuntos de telas, sem que soubessem quem eram os autores. O primeiro grupo de telas havia sido pintado por Adolf Hitler, em sua juventude artística. O segundo, pelo ex-beatle John Lennon. Os alunos observaram as telas de Hitler, uma série de paisagens, e elogiaram os aspectos arquitetônicos reproduzidos nas obras. Já as telas de Lennon não fizeram tanto sucesso entre os estudantes, que desdenharam de sua técnica infantil. Uma semana depois, a autoria das telas foi revelada e os alunos foram confrontados com elas novamente. Desta vez, vários atacaram a mediocridade das pinturas de Hitler e encontraram motivos para elogiar os desenhos de Lennon. “O exercício revelou como a personalidade e as ações de um indivíduo podem influenciar o olhar sobre a sua arte”, disse Sherwin, que citou ainda o caso de apreciadores da pintora mexicana Frida Kahlo que admitiram terem gostado ainda mais dos seus quadros ao conhecer detalhes da sua vida trágica.

Há outro elemento que pode influir no julgamento: o fato de o artista ou pensador ter o papel de “líder espiritual”. Para quem transforma intelectuais e pensadores em gurus, a descoberta de seus malfeitos pode ser um choque considerável. Nilde Parada Franch, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, afirma que o “ser humano precisa idealizar pessoas e situações. Isso é necessário para sua própria sobrevivência psíquica”. Segundo ela, carecemos de ídolos e precisamos acreditar que há seres perfeitos, que vivem de modo esplêndido. Quando nossa própria percepção aponta para alguma falha ou quando informações denegrindo nossos ídolos são veiculadas, “a nossa tendência é negar, é não levar esse conhecimento do plano racional para o plano das emoções em que poderia surgir a indignação ou o repúdio”.

Quando o próprio erudito se coloca na posição de pregador – e julga que pode aconselhar a humanidade na maneira de conduzir seus negócios – a descoberta de um esqueleto no armário também será demolidora. É por isso que as revelações sobre Heidegger são especialmente contundentes. Sua filosofia traz embutida uma crítica geral do caminhos da civilização, do papel da tecnologia na história moderna. Mas como acreditar em alguém que tem uma receita para os homens – e ao mesmo tempo é capaz de manter um silêncio altivo sobre sua associação com o regime mais cruel do século XX e ignorar solenemente o destino de milhões de judeus assassinados por esse regime?

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Quanto mais distante o artista ou pensador estiver de pregações, mais fácil será relevar seus pecados. Quanto mais próximo do doutrinamento, mais relevante mostrar seus defeitos. Mas, ainda assim, o objetivo não deveria ser tirar de circulação obras tidas como injustas, cruéis, implícita ou explicitamente “degeneradas” (para usar a palavra que os nazistas aplicaram a tantos grandes pintores perseguidos por sua máquina política). Depois de apresentar a obra do antissemita Richard Wagner em Israel, o maestro judeu Daniel Barenboim afirmou a VEJA em 2005: “Nos dias de hoje, Wagner iria para a cadeia por causa de seus escritos antissemitas e existe uma ligação horrível entre a música do compositor e a morte de milhões de judeus. Mas não acredito em censura. Richard Wagner traz péssimas lembranças a você? Tudo bem, fique em casa e não ouça. Mas por que um morador de Tel-Aviv, que não tem nada a ver com o holocausto, deve ser proibido de ouvir essas composições?”

Como disse o historiador inglês Paul Johnson em um livro inteiramente dedicado a mostrar o lado impalatável ou mesmo perverso de grandes nomes da cultura, “uma das principais lições do trágico século XX é: cuidado com os intelectuais. Eles devem ser vistos com especial desconfiança quando tentam oferecer aconselhamento coletivo. Acima de tudo, devemos lembrar daquilo que intelectuais habitualmente esquecem: que as pessoas importam mais do que os conselhos, e devem vir em primeiro lugar. O pior de todos os despotismos é a tirania insensível das ideias”.

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