Haiti permanece destruído, e a culpa não é só do terremoto
Esforço internacional mobilizado para reerguer o país devastado há exatos dois anos esbarrou em problemas estruturais que, ainda hoje, atrasam reconstrução
“Não há como resolver a situação de mais de 500.000 pessoas sem lar da noite para o dia. A prioridade de muitos haitianos, de acordo com o que ouço deles próprios, não é receber novas casas, mas sim empregos.”
Sylvie van den Wildenberg, porta-voz da Minustah
Em um primeiro momento, o Haiti poderia parecer um exemplo improvável de falha humanitária: o território é pequeno, acessível e, desde que foi devastado pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010, recebe uma das maiores e mais bem financiadas implantações de ajuda internacional do mundo, com destaque para a ampla presença brasileira. Além da missão de paz da ONU no país (a Minustah), milhares de organizações não governamentais oferecem auxílio. Mesmo assim, a situação parece incontornável. Dois anos após o tremor de 7,3 graus – que matou 223.000 pessoas, feriu mais de 300.000 e deixou 1,5 milhão desabrigadas – o cenário ainda é de calamidade pública. Meio milhão de pessoas vive até hoje em abrigos de emergência, 4,5 milhões sofrem com a escassez de alimentos e 60% da população está desempregada. Como se não bastasse, ainda é preciso conviver com a devastadora epidemia de cólera que se alastra e já infectou mais de 500.000 haitianos, dos quais 7.000 morreram. Embora a doença seja facilmente tratada e controlada em boa parte do mundo, o problema ali se agrava pela falta de estrutura local.
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Diante da emergência por programas de saúde, os diversos grupos que atuam no país pedem mais e mais fundos – e acabam sendo acusados de beneficiar a si próprios, sem fazer com que o dinheiro chegue de fato às vítimas. Houve denúncias de que profissionais das áreas rurais não são treinados e que muitas clínicas de saúde estão simplesmente sendo fechadas. Grande parte dos habitantes da capital Porto Príncipe, cidade de 3 milhões de pessoas, teriam dificuldade de acesso à água potável clorada. Se por um lado os haitianos foram conscientizados de que precisam lavar bem os alimentos antes de comer, por outro são obrigados a dar banho em seus filhos com água de esgoto sem tratamento. “Isso acontece porque pouco foi feito para melhorar o saneamento, permitindo que a cólera se espalhasse em um ritmo vertiginoso”, diz ao site de VEJA o médico indiano Unni Karunakara, presidente internacional da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF).
Embora a epidemia esteja longe de ser superada, vale salientar que muito foi feito no último ano. A taxa de mortalidade, por exemplo, que era de 2,4% em 2010, caiu para até 1,3% em 2011. No entanto, o fato de as condições sanitárias serem um problema antigo no país aumenta a gravidade da situação e a necessidade de mais fundos para investir em prevenção, além de tratamento. Mesmo antes do tremor, apenas 12% dos quase 10 milhões de haitianos recebeu água tratada, de acordo com um centro de controle de doenças dos Estados Unidos. O Haiti já era o país mais pobre do continente americano: 75% da população vivia com menos de 2 dólares por dia, 70% não tinha emprego fixo, 47% dos habitantes não tinham acesso a atendimento médico e apenas 5% das estradas estavam em bom estado de conservação, segundo um relatório da ONU.
Confira, no infográfico abaixo, os países mais afetados pela crise humanitária:
O que já foi feito – Nestes dois anos desde o terremoto sem precedentes, 1 milhão de moradores foram realojados, 5 milhões de metros cúbicos de escombros – a metade do total – foram retirados (o que equivale a cinco estádios de futebol) e 3 milhões de pessoas receberam ajuda para purificar a água que consomem. É bastante, só que ainda há muitos obstáculos a serem vencidos. O desastre mostrou que não bastava apenas construir mais casas, mas edificar uma nova estrutura institucional que respondesse às necessidades da população. “Não há como resolver a situação de mais de 500.000 pessoas sem lar da noite para o dia. A prioridade de muitos haitianos, de acordo com o que ouço deles próprios, não é receber novas casas, e sim empregos”, aponta ao site de VEJA a porta-voz da Minustah, Sylvie van den Wildenberg.
A segurança alimentar é outro desafio descomunal: dos 4,5 milhões de habitantes que passam fome, 800.000 vivem em situação muito grave. Nesse contexto, Michael Barnett, professor da Elliott School of International Affairs, integrada à Universidade George Washington, chama a atenção para o crescimento da consciência da importância de prevenção em áreas problemáticas nos últimos anos, mas admite que os governos e organizações ainda têm muito o que aprender. “Gastamos milhões com pessoas que ficaram doentes, mas não com formas de prevenir essas doenças”, destaca, admitindo, porém, que não é fácil arrecadar dinheiro antes que uma tragédia aconteça. Mais difícil ainda é atuar no sentido de evitar mortes em uma sociedade frágil e tragicamente afetada por uma catástrofe após a outra.
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