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Com projeto sobre aborto, Uruguai emite sinais liberais

Governo investe em questões sociais, mas caráter das propostas é discutível

Por Cecília Araújo e Gabriela Loureiro
22 out 2012, 11h36

Na última quarta-feira, foi aprovada no Congresso uruguaio uma lei que descriminaliza o aborto, com algumas restrições. A medida é autorizada até a 12ª semana de gestação, somente por iniciativa da mãe. Após o terceiro mês, a intervenção é permitida em casos de estupro, de má formação do feto ou quando a gravidez oferece risco de vida à mãe. Na América Latina, apenas Cuba, Guiana e Porto Rico autorizam a interrupção voluntária da gestação, além da capital do México. Uma decisão tão liberal coloca o Uruguai – um país com apenas 3,3 milhões de habitantes – em foco novamente. Nos últimos meses, o governo pôs em pauta outra proposta controversa, ainda em estudo no Parlamento: a estatização da produção e da comercialização da maconha – uma questão defendida pelo próprio presidente José Mujica.

A partir de 2005 – com a entrada da Frente Ampla, de centro-esquerda, na Presidência -, o governo tem investido muito em questões sociais, mas o caráter desses projetos é discutível. “Muitas vezes eles são assistencialistas demais e pouco vinculados ao desenvolvimento do país como um todo”, afirma Alfredo Falero, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República, em Montevidéu. “Ao mesmo tempo em que surgiram essas leis vinculadas à maconha e ao aborto, há elementos que têm continuidade muito clara no âmbito econômico.”

Além de colocar em pauta discussões sobre o aborto e a maconha, o governo uruguaio nos últimos anos tomou outras medidas de caráter liberal. Legalizou a união civil homossexual em 2007, sendo o primeiro da América Latina a fazê-lo. Dois anos depois, permitiu a adoção de crianças por casais gays e habilitou a mudança de nome e sexo, além da entrada de homossexuais nas Forças Armadas. A discussão sobre o casamento gay está em andamento.

Para Javier Gallardo, professor de Ciências Políticas da Universidade da República, as medidas dão continuidade ao que ele considera “uma forte inclinação a promover direitos do cidadão”, que viria desde o início do século XX. A pena de morte no país foi abolida em 1907. Em 1913, foi admitido o divórcio por vontade exclusiva da mulher. Nessa época também foram aprovadas normas trabalhistas como a lei de oito horas diárias, em 1915, e de Previdência Social, na década de 1920. Os avanços nos direitos humanos foram congelados, porém, durante o período da ditadura, entre 1973 e 1985.

Alfredo Solari, senador do Partido Colorado – que votou contra o projeto do aborto -, faz outra leitura das medidas recentes. “É verdade que mais de 50% da população apoia a decisão de descriminalizar o aborto. Mas um assunto de direitos humanos não necessariamente deve guiar-se pela predominância da opinião pública em um determinado momento. É preciso levar em conta muitos outros aspectos, especialmente quando o direito que está sendo questionado é o direito à vida.”

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Já para Francisco Gallinal, senador pelo Partido Nacional, de oposição ao governo, o presidente Mujica faz imposições à população. Ele critica, por exemplo, o projeto de lei sobre a maconha apresentado pelo governo – a proposta estabelece que o estado assumirá o controle da produção, comercialização e distribuição da maconha. Negócio que ilegalmente movimenta entre 30 e 40 milhões de dólares por ano. “Nós, do Partido Nacional, sempre tivemos uma posição mais sensata e racional, mas a Frente Ampla tem maioria no Parlamento. Ou seja, tem votos suficientes para aprovar e revogar as leis que lhe são convenientes.”

Aborto – A lei sobre o aborto é fruto de um extenso vaivém do texto na Câmara e no Senado uruguaios. Desde a reabertura democrática, em 1985, a discussão de projetos sobre o tema foi uma constante. Em 2008, o Parlamento chegou a aprovar uma proposta, que acabou sendo vetada pelo ex-presidente Tabaré Vázquez, que também era da Frente Ampla.

Desta vez, o presidente Mujica já prometeu não se render a pressões contrárias e afirmou que não vai vetar o projeto. Em entrevista neste domingo ao jornal El Universal, do México, Mujica defendeu a descriminalização: “Claro que, do ponto de vista dos princípios, pode ser condenável, mas do ponto de vista do que acontece, acho que se pode salvar muitas vidas. Agora, quem é contra tem razões muito profundas e comoventes. Não é uma discussão trivial”.

A postura do presidente não impediu que os opositores à nova legislação sobre o aborto buscassem formas de conseguir sua anulação antes mesmo de o texto ser sancionado – o que pode ocorrer até sexta-feira. Entre as iniciativas está uma campanha de coleta de assinaturas para convocar um referendo sobre o tema.

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Um dos temores que surgem com a aprovação da lei é que mulheres de países vizinhos possam tentar se beneficiar da medida. Mas a proposta restringe a autorização às cidadãs uruguaias e às estrangeiras que têm no mínimo um ano de residência no país. “A princípio, os habitantes de países vizinhos estão proibidos de vir ao Uruguai usufruir dessa lei. Porém, muitas vezes as pessoas usam caminhos oblíquos para chegar ao objetivo. E pode ser que algo assim ocorra”, pondera Gallinal.

A legislação atualmente em vigor prevê até nove meses de prisão para a mulher que aborta e até dois anos para quem pratica o ato médico. Apesar disso, no Uruguai, a cada ano são realizados mais de 30.000 abortos, segundo números oficiais – ativistas acreditam que o número real pode ser o dobro. “Muitos abortos são feitos em condições precárias, especialmente pelas classes sociais mais baixas. Movimentos ligados às mulheres lembraram em campanha a favor da despenalização que as mães mais pobres muitas vezes correm risco de vida no processo”, diz Falero.

A nova legislação não legaliza o aborto, mas o descriminaliza desde que certos procedimentos regulados pelo estado sejam seguidos. As medidas incluem passar por uma comissão formada por psicólogos, ginecologistas e assistentes sociais que vão conversar com a mulhere sobre suas alternativas e cumprir um prazo de cinco dias de reflexão antes de submeter-se à intervenção. Uma vez completado o trâmite, as mulheres poderão abortar, se ainda desejarem, em qualquer centro público ou privado de saúde do país, que estarão obrigados a realizar a intervenção ou a garantir que terceiros o façam em casos de objeção de consciência. Os casos de aborto que ocorrerem fora desse procedimento continuarão sendo ilegais e, portanto, penalizados. “Esses mecanismos são muito complexos, os prazos, muito reduzidos, e a disponibilidade desses serviços não existirá para uma parte considerável da população. Para mim, essa lei é inaplicável”, opina Solari.

Para Falero, no entanto, a aprovação da lei é positiva no sentido de ser uma tentativa de se quebrar uma hipocrisia social instalada no país – não somente no caso do aborto, mas também da maconha. “Todo mundo sabe que existem abortos. Todo mundo sabe que há jovens que fumam maconha. A descriminalização no caso do aborto e a legalização no caso da maconha podem ser uma saída para esse impasse”, diz.

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Se o Uruguai chama a atenção de quem olha de fora, emitindo sinais “liberais”, internamente os temas delicados são tratados como em toda parte: ficam longe do consenso.

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