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O século de Ali

O maior pugilista da história moldou seu tempo e foi moldado por ele. Um não existiria sem o outro, plenos de certezas, mas também de contradições e erros

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 10 jun 2016, 21h43

“O boxe não era nada. Não tinha importância. O boxe foi apenas o meio para me introduzir no mundo.” As palavras de Cassius Marcellus Clay pareciam ecoar nas homenagens prestadas a ele no grandioso cortejo fúnebre da sexta-feira 10 que serpenteou pelas ruas de Louisville, no estado americano de Kentucky, e terminou no cemitério de Cave Hill com uma emocionada eulogia proferida pelo ex-presidente Bill Clinton. Clay, morto, aos 74 anos, no dia 3 de junho, foi uma dessas figuras cuja passagem, muito mais do que provocar tristeza e comoção, nos leva a um nostálgico e didático passeio pela história de nosso tempo.

Ele não foi apenas um pugilista, o maior, o mais completo, talvez o mais extraordinário esportista de todos os tempos. Moldou um capítulo, os anos 60 e 70 (de corações e mentes em busca de revoluções, liberdade e sexo), e por ele foi moldado. Clay e o século XX, ao menos naquelas duas décadas, foram uma coisa só. Ambos plenos de contradições, de erros e vaivéns, de certezas trocadas por arrependimentos. Sabia erguer bandeiras que, no roteiro de luta pelos direitos civis, contra o racismo e contra a presença dos Estados Unidos no Vietnã, aderiam magicamente à sociedade. Se ele não existisse, seria preciso inventá-lo.

Para o escritor e jornalista David Remnick, autor de uma magnífica biografia, O Rei do Mundo, sobre o tempo de conversão política do boxeador, profundo conhecedor das sutilezas e dos desvãos mentais do campeão, ele “foi a pessoa mais famosa do mundo, um atleta supremo, uma mistura estranha de poder, improvisação e velocidade; um mestre do escárnio; um exemplo e um símbolo de orgulho racial: um lutador, um desertor, um acólito, um pregador, um separatista, um integracionista, um humorista, um ator, um dançarino, uma borboleta, uma abelha, uma figura de enorme coragem”.

Cassius Clay deixou de ser apenas um pugilista para se tornar um nome decisivo da história americana um ano depois de subir ao primeiro lugar do pódio na Olimpíada de Roma, em 1960. Tinha 19 anos. Apresentado por um amigo a Elijah Muhammad, líder de um movimento conhecido como Nação do Islã, foi atraído pela causa, que incluía o ódio racial – e, naquele tempo, a turma de Elijah tinha carradas de razões para protestar, dada a violência de brancos contra negros nos EUA. Os segregacionistas brancos, que o admiravam entre as cordas, começaram a condená-lo. Sua aproximação com Elijah e posteriormente com Malcolm X, a quem abandonaria depois de um racha na Nação do Islã, ganhou as manchetes dos jornais – mas Cassius Clay ainda não era campeão do mundo. Um dia depois de vencer Sonny Liston e finalmente conquistar o título, em fevereiro de 1964, anunciou sua adesão ao islamismo. Em seguida trocou o “nome de escravo” por um outro, “espiritual”. Dali para a frente seria Muham­mad Ali. Ponto. E daqui para a frente, nestas páginas, será apenas Muhammad Ali. Muhammad de Maomé. E Ali de “elevado”, amado por Deus, nome muito comum em países islâmicos.

Se ficasse apenas na militância islâmica, e ainda assim continuasse a vencer no ringue, não atingiria a dimensão política que alcançou – deu o salto ao relacionar, pela primeira vez na história dos EUA, o grito contra a Guerra do Vietnã ao segregacionismo contra os negros. Em fevereiro de 1966, o campeão mundial dos pesos-­pesados tornou-se apto para ir para a guerra. Quando soube da notícia pelos jornalistas que foram à sua procura em Miami, Ali disparou a frase que se tornaria célebre: “Não tenho nada contra esses vietcongues”. A recusa do alistamento, levada aos tribunais, lhe custou a perda do título mundial, multa de 10 000 dólares e um gancho que perdurou até 1970.

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BRIGA: Malcolm X (atrás de Ali, de óculos, em foto de 1964) foi o mentor do boxeador no Islã, mas eles terminariam por romper
BRIGA: Malcolm X (atrás de Ali, de óculos, em foto de 1964) foi o mentor do boxeador no Islã, mas eles terminariam por romper (VEJA)

Ali foi a primeira figura pública americana a associar o Vietnã à luta pelo fim da segregação e pelos direitos civis e naqueles quase quatro anos de afastamento das luvas discursou em universidades por todo o país sobre a ideia de que também a ordem política mundial – e não só nos EUA – escondia a raiz racista de um mundo dominado pelo homem branco. Martin Luther King só o fez um ano depois, e mesmo assim teve de agir contra protestos de seus próprios conselheiros. Quando o justificou aos repórteres, Luther King não citou um pensador político. “Como Muhammad Ali diz, somos todos – negros e pardos e pobres – vítimas do mesmo sistema de repressão.”

O processo de Ali chegou até a Suprema Corte, que lhe deu razão e o confirmou como objetor de consciência, argumento que lhe tinha sido recusado nas instâncias inferiores da Justiça. O objetor de consciência é a pessoa que alega convicções éticas, morais e religiosas para se afastar das Forças Armadas. Segundo a Corte, no caso “Clay, aka Ali, vs. Estados Unidos”, magistralmente explicado em um curto e belo veredicto, “o que o depoimento de Clay acrescenta é que ele acredita apenas nas guerras sancionadas pelo Corão, ou seja, uma guerra religiosa contra infiéis. Todas as outras guerras lhe são injustas (…) isso é uma questão de crença, de consciência (…) essa crença é uma questão de consciência protegida pela Primeira Emenda”. Disse o senador Edward Kennedy: “As ações de Ali contribuíram para o debate sobre a presença dos Estados Unidos no Vietnã”. Quando regressou aos ringues, no início dos anos 70, já o fez como uma figura emblemática na luta pelos direitos civis dos negros. “A Marcha de Washington em dois punhos”, disseram a seu respeito.

Ali olhava criticamente até para o boxe. “Somos como dois escravos no ringue. Os patrões arranjam dois grandes escravos pretos e os deixam lutar enquanto apostam: ‘O meu escravo consegue desancar o seu escravo’. É isso que sinto quando vejo dois homens negros lutando”, disse em 1970. Como a incoerência era uma de suas especialidades, ao enfrentar Joe Frazier – numa trilogia de lutas que representa, sem dúvida alguma, uma obra-prima do boxe -, chamava o adversário de “gorila”, tratando-o por “Tio Tom”, o pai Tomás da cabana, serviçal dos brancos, a grande esperança branca a serviço de uma elite capitalista malvada. Ali se arrependeria das provocações de cunho racialista. Frazier, ofendido, nunca engoliu o que sempre considerou uma abominável injustiça.

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Tivesse Muhammad Ali mantido a postura inegociável dos anos 60 e início dos 70, não teria sido convidado por Barack Obama a ocupar uma das fileiras da frente na cerimônia de posse do presidente negro, em 2009. Em entrevista à revista Playboy, Ali chegou a sugerir, no auge de sua gritaria, que “um homem negro deveria ser assassinado caso mexesse com uma mulher branca”. A lenda homenageada por Obama era uma fera amansada. E, no entanto, sem as diatribes de Ali, Obama talvez não tivesse chegado à Casa Branca, ainda que soe inconcebível juntar um nome com o outro. Mas não – uma forte costura os une.

Cabe uma experiência. Sub­traiam-se do Ali atleta o jogo de pernas, a precisão dos jabs, as esquivas improváveis, aquilo tudo que o fez bonito, magnético e surpreendente para um peso-pesado – e ainda assim, sem o esporte, sobrará uma figura pública incontornável, para alguns até mais interessante que o campeão do ringue, embora rever as lutas contra Frazier e o combate contra George Foreman no antigo Zaire (dá para vê-los no YouTube) esteja na galeria dos grandes prazeres estéticos que podemos nos oferecer, mesmo que abominemos o boxe. Em Ali se combinaram admiravelmente a habilidade, a velocidade, a força, o sacrifício, o coração, a inteligência e os reflexos, qualidades que fazem do boxe, se não a única maneira civilizada de liberar a violência inata do homem, com certeza a forma esportiva mais pura de atender ao instinto de domínio sobre o outro.

Some-se essa destreza com os punhos (61 lutas, 56 vitórias, 37 nocautes) ao que fez falando, urrando, boquirroto que só ele, antes que o Parkinson o calasse, e temos um raro caso de personalidade de quem é possível dizer que definiu um tempo, à sua imagem e imperfeições, amado e odiado – como foram, naqueles anos decisivos dos Estados Unidos, figuras como Martin Luther King, John Kennedy assassinado, os Beatles importados da Inglaterra, Bob Dylan, e poucos outros, muito poucos. O impávido Muhammad Ali foi uma figura necessária, o “maior de todos” – esteve uma vez no Brasil, nos anos 80, para comprar carros da marca Puma e distribuir autógrafos. Se há alguma dúvida da relação dele com a cultura do século passado, cabe um convite ao que houve na noite da sex­ta-feira 3 de junho, no Greek Theater em Berkeley, na Califórnia. Paul Simon cantava The Boxer. Interrompeu a linda balada antes da estrofe final e anunciou à plateia: “Sinto dizer a vocês, mas Muhammad Ali morreu”. Ou­viu-se um imenso “óóó” de lamento, e Simon prosseguiu para o fim da canção: “Na clareira em pé está o boxeador / Um lutador por ofício / E ele carrega uma lembrança / De cada luva que o abateu / Ou o cortou até fazê-lo gritar / Em sua raiva e sua vergonha / Estou indo embora, estou indo embora / Mas o lutador ainda permanece”.

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