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Sertanejo feminista

As mulheres sempre foram objeto de paixão e causa de fossa na música dos caipiras de várias gerações. Agora, elas assumem o papel de protagonistas.

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 12 jul 2017, 21h24 - Publicado em 13 Maio 2016, 21h47

Na música sertaneja, a mulher desperta paixão e desespero. A mesma dupla que canta “Você é minha doce amada, minha alegria / Meu conto de fadas, minha fantasia” também se exaspera diante do desprezo da amada: “Diga, se te deixei faltar amor / Se o meu beijo é sem sabor / Se não fui homem pra você” (É o Amor e Coração Está em Pedaços, ambas de Zezé Di Camargo & Luciano). A dor de cotovelo, obrigatória no recente cancioneiro de bota e chapelão, tinha desfechos mais drásticos em gerações anteriores. A personagem-título de Cabocla Tereza, sucesso de Tonico e Tinoco, acabava assassinada com dois tiros por trocar seu matuto por outro. A mulher de A Hora do Adeus, de Matogrosso & Mathias, tem um fim menos traumático, mas triste: é abandonada porque o capiau chega à conclusão tardia de que se casou com uma interesseira (“Eu só representava o cheque no final do mês”). O gênero mais popular do Brasil sempre foi dominado por duplas masculinas. E as mulheres que são parte considerável (talvez majoritária) do público dos shows sertanejos provavelmente não se imaginam no papel das megeras que tanto sofrimento causam a seus ídolos. Hoje, porém, um novo contingente de artistas tem rompido o arraigado machismo do meio para cantar o amor não correspondido e a traição com voz feminina. A diferença de perspectiva que as cantoras sertanejas trazem ao gênero já é sentida pelas fãs. “Há mulheres de seus 30, 40 anos, casadas, cantando as músicas delas. Existe uma identificação”, diz o produtor Luiz Eduardo Pepato. O valor do cachê das novas artistas é, em geral, um terço menor que o de uma dupla ou cantor de primeira linha. Mas elas estão crescendo. “Entre os dez shows sertanejos mais requisitados nas regiões Sul, Sudeste e Cen­tro-Oes­te, pelo menos quatro são de artistas do sexo feminino”, diz Marcos Mioto, um dos promoters dos shows mais conceituados do mercado.

A vertente mais popular do sertanejo feminista é a da “sofrência”. Suas principais representantes são a goiana (que faz mais sucesso no Nordeste) Marília Mendonça, 20 anos, a sul-mato-grossense Paula Mattos, 26, e Maiara & Maraisa, gêmeas ma­to-grossenses de 28 anos. Fazem letras doídas, que caberiam bem no repertório de uma Adele (aliás, elas têm a mesma silhueta rechonchuda que a cantora inglesa ostentava no início de carreira). Todas fizeram carreira compondo para outros intérpretes, o que as credenciou para o voo como cantoras. Marília foi gravada por Jorge & Mateus, João Neto & Frederico e até Wesley Safadão; Maiara & Maraisa foram gravadas por Gusttavo Lima e também pela dupla Jorge & Mateus. As duas irmãs ainda se uniram a Marília (e aos compositores Juliano Tchula e Daniel Rangel) para fazer Cuida Bem Dela, gravada por Henrique & Juliano. Paula Mattos, por seu turno, tem canções na voz de Lima, Marcos & Belutti e Thaeme & Thiago.

De sofrimento, elas entendem. Marília Mendonça lembra que se iniciou nos shows para ajudar no orçamento familiar quando o padrasto, obreiro de uma igreja evangélica, trocou a mãe dela por outra mulher. Mãe e filha peregrinaram pelos bares de Goiânia em troca de cachês que variavam de 20 a 50 reais. “Minha mãe pedia só uma cerveja por apresentação, pois não podia pagar mais. Nunca terminava de beber, porque senão o garçom trazia outra”, conta a cantora. Os dias de penúria já estavam no passado quando Marília encontrou Maiara e Maraisa em um spa para emagrecer. O trio trocou histórias de fossa e desilusão. Marília recebera havia pouco a notícia de que um ex-namorado iria se casar. Maiara lembrou que seu ex morava com outra em uma casa cuja mobília ela escolhera. Essa coleção de mágoas rendeu No Dia do Seu Casamento, assinada por Marília e Maraisa em parceria com Juliano Tchula e gravada por Maiara & Maraisa. A personagem da canção ataca o ex com uma fúria digna de Medeia: “No dia do seu casamento / Vou entrar correndo / Que se explodam os convidados / (…) Eu sei bem quem você ama / É a mim que você chama / Na saúde, na tristeza / Na alegria e na cama”.

Roberta Miranda, que estourou entre as décadas de 80 e 90, é tida pelas cantoras atuais como um modelo. Faz sentido. Embora o mundo caipira – e posteriormente sertanejo – tenha tido estrelas como Inezita Barroso, Irmãs Galvão e a ex-jovem guarda Nalva Aguiar, foi Roberta quem moldou o estilo da intérprete sertaneja. Cantava bem e compunha as próprias músicas (as meninas atuais se aproximam da temática dolorosa de suas criações). E brigou contra o preconceito em um meio no qual predominam os homens. “Os diretores de gravadora me queriam apenas como compositora. Não levavam fé no meu talento de intérprete”, diz Roberta, que cantou por catorze anos na noite de São Paulo até conseguir seu primeiro contrato discográfico (ainda ganhando menos royalties que os homens). Hoje, ela pode se vangloriar: “Vendi 1,5 milhão de cópias. O pessoal perdeu até as impressões digitais de tanto que ensacou o meu LP”. Roberta Miranda agora aposta em uma nova cantora, Maria, intérprete mineira que participa de seu álbum de duetos. Por muito tempo, porém, ela era uma flor rara no matagal sertanejo. O sucesso da autora de Majestade, o Sabiá e Vá com Deus incentivou as companhias a procurar outras intérpretes do sexo feminino. Ninguém de relevo surgiu até que o bloqueio fosse rompido pela mineira Paula Fernandes, que ficou famosa ao dividir o palco com Roberto Carlos em seu especial de fim de ano em 2010. “O machismo existe desde que o mundo é mundo. Mas sempre tive uma boa recepção entre os homens do meio sertanejo, que me convidam para parcerias. Isso é sinônimo de garra, luta e honestidade”, prega Paula.

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Hoje, o elenco feminino é maior e mais variado. A cuiabana Bruna Viola, de 22 anos, não quer saber de sofrimento ou sofrência. Exímia violeira, ela passeia por pagodes e rasqueados típicos do instrumento e por um amálgama de pop rock que lembra as produções brasileiras dos anos 1980. O resultado tem agradado: Bruna já gravou um DVD ao vivo e tem shows marcados nos Estados Unidos. “Eu toco em tudo quanto é lugar: rodeio, baladas. Só não animo velório”, brinca. O pop também faz parte da receita musical da mineira Gabi Luthai, de 23 anos. Gabi (nome artístico de Gabriella Maria Mota e Silva) sabe fazer bom uso das redes sociais: seu canal no YouTube tem mais de 120 milhões de visualizações. Ela recorreu aos fãs para gravar seu segundo disco, por enquanto disponível apenas nas redes sociais. Gabi arrecadou o dinheiro, por crowdfunding, e trabalhou com quatro produtores. O mesmo mundo virtual tem sido a ferramenta de trabalho de Lola & Vitoria, que vão além do feminismo. Suas duas canções de trabalho são Tô Grávida e Nem Se Fosse o Safadão. Na primeira, avisam ao pai da criança que vão criar o rebento sozinhas (um Papa Don’t Preach, de Madonna, estilo campestre). Em Nem Se Fosse o Safadão, elas avisam ao bofe que deseja vê-­las “pilotando o fogão” que não estão aí para isso: não fariam esse papel doméstico nem pelo forrozeiro Wesley Safadão (sim, ele é citado como padrão de beleza masculina). “Fui criada no leite em pó”, diz a letra. Outra sertaneja com levada pop é Laís, mato-grossense de 25 anos. Ela teve uma encarnação anterior como cantora juvenil, com o nome Yasmin. Há três anos, lançou o disco de estreia no sertanejo, que teve vendas modestas, mas coleciona elogios. “Dá uma ouvida em Majestade, o Sabiá com essa menina”, derrete-se Roberta Miranda.

O mundo do entretenimento demorou para absorver o talento das sertanejas. Entre os empresários, era corrente a visão preconceituosa de que é mais complicado trabalhar com mulheres. “Cheguei a ouvir de um empresário: ‘Menstruou, não faz sucesso’ ”, acusa Maraisa. “Hoje ele está à procura de cantoras para seu escritório.” Laís também acusa o machismo dos empresários: “A visão deles é que mulher dá muito problema por causa dos surtos de humor, ou porque vai ter de parar o trabalho se ficar grávida”. Aos poucos, esses entraves estão desaparecendo. Hoje há até profissionais que se especializam em auxiliar cantoras. O parananese Luiz Eduardo Pepato começou nos discos de Luan Santana e Gusttavo Lima, mas virou o “Quincy Jones do chapéu e da saia rodada”: ele produziu os últimos trabalhos de Maiara & Maraisa e de Marília Mendonça e está trabalhando nos próximos lançamentos de Wanessa Camargo, Paula Mattos e da novata Fernanda Costa. Pepato reconhece que as meninas requerem um pouco mais de tato. No entanto, aponta qualidades que estariam em falta entre os homens. “Elas escutam mais a gente, são mais abertas às novas ideias”, diz. Muitas vezes, o trabalho exige uma psicologia, digamos, heterodoxa. Maiara lembra de um desabafo que fez ao produtor: não confiava na beleza da própria voz, que alguns consideravam ruim. Ouviu um incentivo temperado pela delicada sinceridade sertaneja: “O Pepato falou: ‘Maiara, sua voz é uma porcaria mesmo. Mas você vai fazer muito sucesso com ela’ ”, conta a cantora.

Para conquistarem o público predominantemente feminino, as estrelas do sertanejo moderam o sex appeal. Não se pode enciumar as fãs: visual glamouroso e modelitos ousados não fazem parte do figurino caipira moderno (há exceções, sem extravagância: Gabi Luthai faz o gênero gata, e Marília Mendonça não dispensa shortinhos em seus shows). “Tenho de me identificar com a mulher real, que não tem dinheiro para fazer plástica”, diz Maiara, que se submeteu recentemente a um regime não por vaidade, mas para driblar os problemas de respiração que a atacavam durante os shows (Paula Mattos, aliás, também anda se submetendo a um regime). O desafio da paranaense Andreah Andreolli, de 33 anos, será fazer com que as fãs do novo sertanejo feminino não a vejam como rival. Bela, loira e curvilínea, ela é backing vocal de Zezé Di Camargo & Luciano. Embora não queira largar o trabalho com a dupla, Andreah tem recebido material de novos compositores, para lançar-se como cantora-solo. “Não penso em cantar sobre baladas ou namoros. Gosto de cantar a natureza e as coisas positivas”, despista. “E sempre compartilho dicas de beleza com as fãs. Vamos ficar lindas juntas.” Não deixa de ser um chamado à irmandade feminista.

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