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Polanski explora o jogo do poder sexual em ‘A Pele de Vênus’

Baseado na obra de Sacher-Masoch, autor que deu origem ao termo masoquismo, filme deveria ser obrigatório para quem se delicia com ‘Cinquenta Tons de Cinza’

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 26 set 2015, 10h00

Um homem de passado traumático assina um contrato para ter uma relação de dominante e dominado com uma mulher. O enredo do novo filme de Roman Polanski, A Pele de Vênus, em cartaz desde quinta no país, não poderia ser mais familiar em tempos de Cinquenta Tons de Cinza, o livro da britânica E. L. James que demoveu o pudor dos leitores e recolocou o erotismo na lista dos mais vendidos. A comparação, contudo, também não poderia ser mais descabida. Baseado na obra do austríaco Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895), autor que deu origem ao termo masoquismo, o longa narra a relação de dominação entre um homem e uma mulher e, em vez de perseguir um final feliz para o casal, se dedica a lançar com espirituosidade uma série de questões sobre gênero, sexo e poder.

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Em Cinquenta Tons de Cinza, a virginal Anastasia (Dakota Johnson no cinema) conhece o ricaço Christian Grey (Jamie Dornan), um homem atormentado que propõe a ela um acordo em que ele será o dominador e ela, a dominada. A doce Anastasia ajuda a curar as chagas de Grey, que se deixa suavizar à medida que se apaixona. Uma historinha água com açúcar, que não à toa foi chamada de “mommy porn” ou “pornô para mamães” ao redor do mundo. Já em A Pele de Vênus, cujo roteiro foi decalcado da peça que o americano David Ives escreveu a partir do livro de Sacher-Masoch, a relação entre Vanda (Emmanuelle Seigner, mulher de Polanski) e Thomas/Severin (Mathieu Amalric) passa longe do ideal romântico.

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Vanda é o nome da personagem principal de Masoch, mas também da atriz que chega atrasada para fazer um teste para a peça que Thomas, um diretor de teatro, está preparando com base na obra do austríaco. Ela chega molhada de chuva, tagarela e um tanto grosseira, com uma aura rude e vulgar, e encontra Thomas de partida para um jantar com a noiva, depois de um dia de infrutíferas audições. Sem parar de falar, começa a trocar de roupa entre as cadeiras e saca da bolsa um surrado script do espetáculo, convicta de que conseguirá fazer o teste, apesar do atraso. Ainda dispara inferências sobre o texto que desagradam ao diretor – “Tem a ver com a música do Velvet Underground?”, “Não é muito machista? -, mas, apesar de irritá-lo, ela o vence pelo cansaço. Thomas, acuado e sem a menor esperança de reverter o dia ruim, dá uma chance para a atriz e aceita ler as falas de Severin, o aristocrata de Masoch, para compor com ela a cena de abertura da peça.

Vale dizer que Vanda, a atriz, não estava assim tão fora da razão: apesar de editor de uma revista progressiva, a On the Highest, que combatia o antissemitismo e defendia a emancipação feminina no século XIX, Sacher-Masoch foi acusado de misoginia por seu livro. Nele, Vanda, ainda que dominadora, assume um papel que lhe é atribuído por Severin, o aristocrata que, no fundo, teria o controle de toda a relação e converteria a personagem em uma deusa fria – uma Vênus – a seu bel prazer.

É nesse ponto do roteiro que uma primeira transformação – ou virada – se opera. Vanda, a atriz, se revela não apenas uma intérprete promissora, ao encarnar de modo marcial a deusa fria de Masoch, mas faz parecerem falsas as perguntas bobas disparadas sobre o texto, que ela demonstra saber de cor. Outra surpresa vem a seguir: a atriz que entrou atabalhoada pela porta do teatro começa a mostrar confiança e a dirigir o diretor, que anota atônito suas sugestões para a futura montagem.

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Outras reviravoltas virão, como quando Vanda insinua saber demais da vida de Thomas e ter sido enviada para torturá-lo, e quando, mais perto do fim, eles trocam de papéis – e também de posição e de gênero. É ao longo dessas viradas que cresce o mistério do filme. Afeito a desenvolver tramas tensas em ambientes fechados, vide O Bebê de Rosemary (1968), O Pianista (2002) e O Escritor Fantasma (2010), aqui Polanski leva a tática ao paroxismo. Toda a ação do longa, de cerca de uma hora e meia, se passa dentro de um claustrofóbico teatro, com dois únicos personagens, que se desdobram em outros dois.

Símbolo do pacto pela fantasia traçado entre texto e espectador, o teatro serve também como palco para Polanski tecer uma trama dúbia, em que a identidade de Vanda, a atriz, escapa ao público ainda mais que a de Vanda, a deusa de Masoch. E para que Polanski desfile algo de sua autobiografia como gosta de fazer – disfarçadamente. Na troca de papéis, por exemplo, o ator francês Mathieu Amalric, que é a cara do Polanski jovem, se veste de mulher, como o diretor já fez O Inquilino (1976). Além disso, é impossível não relacionar o crime pelo qual o cineasta vem sendo perseguido há anos, o de se abusar de uma adolescente nos Estados Unidos, nos anos 1970, com o tema central do filme, o do jogo de poder entre os sexos.

Não é um filme leve ou superficial. Pode parecer, mas não é Cinquenta Tons de Cinza. É algo muito melhor.

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