Entre tantos desdobramentos de sua carreira de polígrafo – contista, romancista, poeta, missivista compulsivo -, Mário de Andrade (1893-1945) escreveu crítica musical e até publicou uma Pequena História da Música. No entanto, o escritor paulista não tinha ouvido – não, pelo menos, para a prosa em língua portuguesa. Vícios cacofônicos já são patentes em sua mais conhecida realização, Macunaíma, e se tornam ainda mais dolorosos em Café (Nova Fronteira; 264 páginas; 34,90 reais). Esta obra inédita e inacabada chega agora às livrarias em edição de Tatiana Longo Figueiredo, pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, renomado centro de culto a Mário de Andrade. A profusão de superlativos (fatigadíssima, extravagantíssimo) deixaria acanhado até o José Dias de Dom Casmurro. Ainda mais canhestro é certo fraseado que parece antecipar a pior escrita acadêmica dos atuais departamentos de ciências humanas (exemplo: “seres que adoram a posse pela permanência física ineludível do possuído”).
Mário de Andrade planejara uma obra caudalosa, de 800 páginas, mas sua misericordiosa preguiça o fez parar no segundo capítulo. O primeiro acompanha as desventuras de Chico Antônio, nordestino néscio e ingênuo – o clichê do “tipo popular” – que vai ganhar a vida em uma fazenda de café paulista. O segundo retrata a decadente família do dono da fazenda. Ao estilo do naturalismo do século XIX, os personagens são quase todos encaixados na moldura torta de algum estereótipo nacional, regional ou racial. Há todo um rebarbativo parágrafo sobre os hábitos higiênicos dos nordestinos, que poderia ser resumido em um velho e odioso lugar-comum: são pobres, mas limpinhos. Os interessados em especular sobre a sexualidade do autor devem ler a passagem em que Chico Antônio anda por São Paulo de mãos dadas com um recém-descoberto “companheiro íntimo” (mas a narrativa covarde recua da sugestão homoerótica: a dupla em seguida admira as pernas de uma mulher).
Café é um entre vários projetos literários que Mário de Andrade deixou inconclusos. Planejara também, por exemplo, uma obra de crítica intitulada O Pico dos Três Irmãos, dedicada aos poetas do modernismo que ele considerava mais bem realizados: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Em muitas faculdades de letras, acredita-se que o próprio Mário poderia ser o quarto irmão. Não, não é, nem de longe. A tardia publicação de Café terá o mérito de tornar mais clara esta realidade: Mário de Andrade foi um escritor medíocre.
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