O diabo a quatro
Destaque de um festival de música de câmara em São Paulo, o quarteto de cordas exige talento, disciplina — e traquejo nas relações entre os integrantes
Por SÉRGIO MARTINS
Indagado por um jornalista, em 2000, sobre as razões de a Filarmônica de Berlim ter uma sonoridade única, o regente italiano Claudio Abbado (1933-2014), então diretor artístico da orquestra, respondeu: “Nas horas de folga, eles se dedicam à música de câmara. Isso faz toda a diferença”. Abbado não estava só fazendo média com seus músicos. As formações camerísticas permitem que os instrumentistas aprimorem o refinamento interpretativo e estreitem o companheirismo musical, na busca por um consenso criativo que, para variar, não é ditado por um maestro. Mas música de câmara não é apenas treino: algumas peças podem ser tão ou mais exigentes (e belas) que as maiores sinfonias. No universo dos pequenos grupos, entre duos, trios, quintetos, sextetos e afins, o quarteto de cordas é a joia da coroa. Enquanto certos ensembles (de percussão, por exemplo) só surgiram no modernismo do século XX, o repertório do quarteto vem sendo enriquecido pelos principais compositores desde o século XVIII. Trata-se de um formato enxuto – dois violinos, viola e violoncelo -, mas capaz de complexidades e sutilezas incomparáveis. É verdade que, em termos de popularidade, não há composição do gênero que possa competir com as missas de Bach ou as sinfonias de Beethoven. Mas os quartetos finais do mesmo Beethoven ou os seis quartetos de Béla Bartók estão, sem exagero, entre os maiores patrimônios musicais da humanidade (veja outras peças fundamentais do gênero na pág. 113). Ainda hoje, a composição e a execução de quartetos seguem em andamento molto agitato. Nesta semana, o Estado de São Paulo sedia um festival de música de câmara. Dos 44 eventos programados, dez serão recitais de quartetos de cordas. O vanguardista Kronos Quartet, o jovem Quarteto Lutoslaswki e o recém-formado Quarteto Carlos Gomes farão um panorama geral do gênero, com obras que vão do romântico Carlos Gomes e do impressionista Claude Debussy até Bryce Dessner e Amon Tobin, criadores vindos do universo do rock e do drum’n’bass. “Os quartetos de cordas são o Santo Graal da música”, diz Marcin Markowicz, líder do Quarteto Lutoslawski.
A invenção do quarteto de cordas é atribuída ao austríaco Joseph Haydn, que também ajudou a formatar as sinfonias. “Se Bach, nascido no século XVII, é o compositor do barroco, Haydn é o responsável pela música do século seguinte”, decreta Marcelo Jaffé, violista do Quarteto de Cordas da Cidade. Consta que o austríaco chegou a esse que é talvez o gênero mais elegante da música erudita quase por acidente: encarregado, aos 18 anos, de criar música para entreter um nobre empregador, Haydn só dispunha de quatro instrumentistas – dois violinistas, um violista e um violoncelista. Discípulo de Haydn (e seu companheiro em um quarteto no qual tocava viola, enquanto o mestre assumia um dos violinos), Mozart foi um grande cultor do gênero, mais tarde revolucionado por Beethoven. O formato manteve-se vital na música moderna e de vanguarda – com algumas variações heterodoxas: o alemão Karlheinz Stockhausen compôs um absurdo Concerto para Quarteto de Cordas e Helicóptero, e o americano Steve Reich juntou o som do quarteto a manipulações eletrônicas e a gravações de anúncios em estações ferroviárias em Different Trains.
O entrosamento dos quatro músicos é extenuante. “Para encontrar a sonoridade ideal, ensaia-se mais do que numa orquestra sinfônica”, diz Cláudio Cruz, violinista do Carlos Gomes. A constância na formação é importante para a manutenção da sonoridade de cada grupo, mas trocas são inevitáveis. O americano Kronos Quartet mudou de violoncelista três vezes nos últimos quinze anos. “Mas, antes disso, mantivemos a formação original por 26 anos. Os Beatles duraram muito menos”, diz o violinista David Harrington. Formado em 1947 por três sobreviventes de campos de concentração nazistas e um violoncelista inglês, o Quarteto Amadeus, famoso por magníficos registros integrais das peças de Beethoven e Brahms, foi constituído em torno de um pacto: encerraria as atividades assim que o primeiro músico saísse do grupo. E, de fato, o conjunto extinguiu-se em 1987, com a morte do violista Peter Schidlof. No Brasil, o Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo, fundado por Mário de Andrade, é um invejável exemplo de longevidade: completa oitenta anos em 2015. Obviamente, não há mais ninguém da primeira formação em atividade, mas os integrantes atuais tocam juntos já há treze anos. O aniversário será comemorado com o lançamento de um álbum ao vivo, gravado em Chicago.
O quarteto de cordas é um arranjo íntimo e, como um casamento, está sujeito a turbulências afetivas. “A relação vai se deteriorando com o passar do tempo”, admite Cláudio Cruz. O quarteto americano Takács – obrigatório na discoteca de todo apreciador de música erudita – tenta limitar o convívio ao palco e aos estúdios. Em excursões internacionais, os músicos fazem questão de se sentar separados no avião e de se hospedar em quartos distantes nos hotéis. Com realizações artísticas mais limitadas – e por boa razão -, o quarteto americano Audubon acabou em uma contenda judicial, em 2005, com três integrantes tendo de penhorar até os instrumentos para pagar mais de 600 000 dólares a um violinista que se sentiu lesado. Marcin Markowicz, violinista do polonês Lutoslawski, aparentemente tem a solução para evitar o desgaste: “O trabalho em grupo ocupa apenas alguns meses de nossa vida profissional. Temos outras atividades, como solistas e músicos de orquestras”.
Pedras fundamentais do quarteto como Haydn, Mozart e Beethoven estarão ausentes do festival paulista. Mas há cavalos de batalha de qualquer grupo de câmara que se preze: A Morte e a Donzela, de Schubert, pelo Quarteto Carlos Gomes, e as criações de Schumann e Debussy, pelo Lutoslawski. O grupo polonês interpretará também o compatriota do qual tirou o nome, Witold Lutoslawski. O Kronos vai exibir sua especialidade: música do século XX e composições inspiradas no pop (“Eu toco obras de compositores que minha neta poderá conhecer pessoalmente”, orgulha-se Harrington), além de um tango de Astor Piazzolla. A divina integração de violinos, violoncelo e viola é difícil, mas flexível o bastante para abraçar a diabólica música moderna.
Serviço:
Português: www.sescsp.org.br/musicadecamara
Inglês: https://musicadecamara.sescsp.org.br/en/schedule
Cânone de câmara
Alguns dos momentos mais importantes da história dos quartetos de cordas
Mozart – Quartetos Haydn Escritas em Viena entre 1782 e 1785, essas peças são dedicadas a Franz Joseph Haydn (1732-1809), considerado o criador dos quartetos de cordas. Depois de escutá-las, Haydn teria dito ao pai do jovem Wolfgang Amadeus Mozart que o menino era o compositor mais talentoso que ele já havia conhecido. Mozart (1756-1791) usou, de forma ousada, dissonâncias que não se costumavam ouvir então – e assim preparou o terreno para as revoluções de Beethoven Gravação recomendada: Mozart: the Six “Haydn” Quartets, pelo Juilliard Quartet
Beethoven – Todos os quartetos Ludwig van Beethoven (1770-1827) conferiu ao quarteto a grandiosidade que antes só se ouvia nas sinfonias. E inovou muito: o Quarteto Op. 59 Nº1, por exemplo, toma liberdades que não se conheciam, como o cruzamento de altura entre violoncelo e violino em algumas passagens, o alargamento da tessitura interna do quarteto (violino muito agudo sobre cello bastante grave), e, no movimento Scherzo, notas repetidas com efeito de percussão Gravação recomendada: The Complete String Quartets, pelo Alban Berg Quartet
Bartók – Seis Quartetos São o ponto mais significativo da carreira do compositor húngaro – o que não é pouco, pois Béla Bartók (1881-1945) criou concertos que fazem parte do repertório das principais orquestras em todo o mundo. Além do elemento folclórico presente em suas obras, os quartetos trazem uma complexidade de execução que desafia os músicos. Alguns ouvintes podem considerá-los áridos, mas representam bem o espírito de caos do modernismo no início do século XX Gravação recomendada: The Six String Quartets,pelo Takács Quartet
Shostakovich – Os Quartetos de Cordas Completos Dmitri Shostakovich (1906-1975) deixou quinze quartetos e quinze sinfonias. Mas o compositor russo demorou mais a chegar ao formato de câmara: só compôs o primeiro quarteto depois de criar sua Quinta Sinfonia. Mais melódicos que os de Bartók, seus quartetos são simples e diretos – tudo na medida certa. A atmosfera densa de alguns deles é inspirada em eventos da II Guerra e pela opressão do stalinismo Gravação recomendada: The Complete String Quartets, pelo Emerson String Quartet
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