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Netflix estreia no cinema com drama sobre garoto-soldado

‘Beasts of No Nation’, de Cary Fukunaga, é o primeiro longa lançado simultaneamente em um serviço de streaming e nos cinemas americanos

Por Mariane Morisawa
17 out 2015, 09h00

Cary Fukunaga hesita em se considerar um pioneiro. Mas a verdade é que o americano de 38 anos, que trabalhou com Michael Fassbender e Mia Wasikowska em Jane Eyre (2011) e com Matthew McConaughey e Woody Harrelson na primeira temporada da série True Detective, pela qual ganhou o Emmy de direção de série dramática no ano passado, faz parte de uma potencial revolução no cinema, com o lançamento do longa-metragem, Beasts of No Nation, pela Netflix. O filme, um drama sobre um menino-soldado da África Ocidental, entrou em cartaz nesta sexta-feira em cinemas dos Estados Unidos e do Reino Unido, ao mesmo tempo em que chegava ao site.

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“Ainda não sei se vai transformar alguma coisa”, disse Fukunaga em conversa com a imprensa no Festival de Toronto, que contou com a participação do site de VEJA. Sua preferência pessoal era exibir Beasts of No Nation no cinema. “Fiz o filme para a tela grande. Mas sei, pela minha experiência com Sin Nombre (seu primeiro longa, de 2009) e Jane Eyre, que a maioria acaba vendo em DVD ou streaming. No fim, queria que o maior número possível de pessoas assistisse ao longa.”

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Algumas das maiores redes exibidoras americanas recusaram-se a abrir espaço para Beasts of No Nation porque o filme, seguindo os padrões da Netflix, subverte o esquema de distribuição convencional. Enquanto as séries são disponibilizadas na íntegra pelo serviço de streaming, que coloca todos os episódios no ar de uma vez, o filme não vai respeitar a tradicional janela (intervalo) entre o lançamento no cinema e no home entertainment. Mas a Netflix tem mais de 69 milhões de assinantes no mundo inteiro, o que deve garantir uma boa “bilheteria” para a produção.

Fukunaga começou o projeto há cerca de dez anos, depois de ler o livro de mesmo nome — Feras de Lugar Nenhum (Nova Fronteira) — escrito pelo americano de origem africana Uzodinma Iweala, quando cursava a pós-graduação em cinema na New York University – ele estudou história e política e foi um atleta profissional de snowboard antes de virar cineasta. Tinha rodado um documentário no oeste da África e visitado campos de refugiados em Serra Leoa e queria escrever um roteiro sobre a situação das crianças na região quando um amigo o presenteou com o romance. O livro conta a história de Agu (interpretado pelo estreante Abraham Attah), um menino arrancado de sua vila, separado de seus pais e transformado em soldado pelo Comandante (vivido por Idris Elba no filme), em um país não especificado da África Ocidental.

Fukunaga achou que jamais conseguiria Idris Elba, famoso pelas séries The Wire e Luther e filmes como Thor e O Círculo de Fogo. “Não acreditei que tínhamos chance. Para mim, ele é grande, um astro”, contou o diretor. “Fiquei chocado ao ver Elba assinar conosco praticamente depois de uma conversa.”

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Para o ator, nem havia muito o que pensar: seu pai, morto dois anos atrás, era de Serra Leoa, e sua mãe é de Gana. “Minha família está conectada com uma história parecida com essa. Achei que tinha de fazer.” Foi Elba quem sugeriu que as filmagens fossem feitas em Gana. “Eles não têm infraestrutura, mas havia autenticidade”, disse. Sua mãe o acompanhou. “Ela gosta de tudo o que faço que tenha a ver com a África. Mas esse filme foi especial porque foi a minha primeira vez na terra natal da minha mãe. Passamos dez dias lá antes de começarem as filmagens. Ela ficou orgulhosa.”

E, para Fukunaga, era perfeito rodar em uma locação tão apropriada – seus trabalhos anteriores são fortes justamente em captar a energia dos locais onde a história se passa. “Minha zona de conforto é o naturalismo, por causa dos meus estudos acadêmicos. Quando pesquiso para um filme, procedo da mesma maneira como se estivesse fazendo jornalismo investigativo ou um livro. Vou checar os fatos eu mesmo. Preciso de detalhes para elaborar as cenas.” Mas filmar na floresta foi um desafio. Um dia, Idris Elba apoiou-se em uma árvore e quase caiu em um precipício. “Achei que ia morrer. Mas seria uma maneira espetacular de morrer, vou admitir”, comentou o ator, entre risos. Mas filmar na floresta foi um desafio. Um dia, Idris Elba apoiou-se em uma árvore e quase caiu em um precipício. “Achei que ia morrer. Mas seria uma maneira espetacular de morrer, vou admitir”, contou, entre risos.

Bem mais complicado, porém, foi achar o garoto que viveria Agu. A produção tentou primeiro fazer audições abertas – para Sin Nombre, usando o mesmo método, apareceram 500 candidatos. Não foi o caso na África, e a equipe teve de percorrer a região de Camarões a Serra Leoa para encontrar Abraham Attah em Acra, a capital de Gana. Ele fazia um workshop de teatro, mas nunca tinha estado em nenhum filme. “Uma semana antes de começarmos, ainda estava com dúvidas. Abraham era muito cru, e eu precisava confiar um projeto de dez anos a esse garoto que tinha conhecido algumas semanas antes”, disse Fukunaga.

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No set, Abraham Attah manteve sua distância de Idris Elba, reproduzindo um pouco a relação entre Agu e o Comandante. Elba ficou no personagem a maior parte do tempo. “Tínhamos 200 figurantes, eles tinham de me seguir e acreditar em mim. Não dava para alguém pensar: ‘Ah, aquele ali é o cara de The Wire interpretando um ditador africano?'”, contou o ator. “Quando chegava ao set, eles batiam continência.”

Segundo Elba, os figurantes passaram por um treinamento com Annointed Wesseh, que faz um dos soldados do Comandante, Tripod (ou tripé) – que ganhou esse apelido por andar o tempo todo nu. Aprenderam a manusear armas e a se colocar em posição de combate, chegando a se organizar sozinhos nas filmagens em esquadrões. “Tripod é um padre agora, mas trabalhou para Charles Taylor, sabe colocar ordem”, disse Elba. Charles Taylor foi alto funcionário do governo de Samuel Doe (1980-1990), na Libéria, até ser demitido por corrupção. Treinado como guerrilheiro na Líbia, retornou ao seu país em 1989 como líder da Frente Nacional Patriótica da Libéria, iniciando a Primeira Guerra Civil do país (1989-1996) com o objetivo de depor Doe, o que conseguiu. Foi eleito presidente em 1997, depois de ameaçar recomeçar a guerra. Durante o seu governo, foi acusado de estar envolvido na Guerra Civil de Serra Leoa, trocando armas pelos chamados “diamantes de sangue” (pedras tiradas de uma zona de guerra e usadas para financiar o conflito), e apoiando o recrutamento de meninos-soldados. Uma rebelião contra Taylor, liderada pelo grupo Liberianos Unidos pela Reconciliação e a Democracia, iniciou a Segunda Guerra Civil. Em 2003, ele renunciou depois de ser acusado de crimes de guerra. Foi condenado em 2012 e cumpre pena no Reino Unido.

Dado o tema, o diretor sabia que precisava dosar a violência – ele equilibra a brutalidade da situação de Agu com um bocado de lirismo. As cenas mais violentas se passam longe da câmera. “O que eu mostro em Beasts of No Nation não é nada perto do que a guerra é na realidade. Estive em zonas de conflito e vi as consequências. O objetivo é mostrar o máximo possível sem que sua audiência se desligue.”

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Fukunaga mergulha o espectador naquele ambiente e na realidade de Agu, como já tinha feito em True Detective. O filme, em princípio, pode ser visto como uma produção de guerra, mas não deixa de ser uma história de crescimento, como tantas outras sobre crianças e adolescentes. Claro que as circunstâncias de Agu são extraordinárias. Mas o diretor tem calma ao mostrar o menino ainda em sua casa, a convivência com os irmãos, a malandragem de tentar vender televisões sem os tubos para os soldados que já patrulham a região. O pesadelo começa pouco depois de seu pai despachar a mãe e suas irmãs para um lugar mais seguro. A vila é atacada, e, logo, Agu se vê sozinho no mundo, perdido na mata. Lá, é salvo pelo Comandante. Só que esse salvamento tem muito de condenação, porque o menino vai virar um soldado, perdendo a inocência pouco a pouco, em um processo doloroso de assistir, contado com imagens fortes, que nunca caem na pieguice. A criança permanece enterrada ali em algum lugar e reaparece em alguns breves momentos, num trabalho sofisticado do jovem Attah. Ao fazer o retrato desse personagem, Beasts of No Nation traça um panorama da tragédia dos países daquela região, sem maniqueísmos. Porque, no fim das contas, até o Comandante é algoz e vítima.

O filme recebeu um bocado de atenção depois de ser exibido nos festivais de Telluride, Veneza (de onde Abraham Attah saiu com o troféu Marcello Mastroianni para jovens atores) e Toronto. As críticas foram quase todas positivas. Depois do lançamento nos cinemas e na Netflix, começa a próxima batalha: a campanha pelo Oscar. Se emplacar alguma indicação – e é bom lembrar que foram 34 da Netflix no último Emmy -, a revolução estará decretada.

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