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‘Making a Murderer’ e os dilemas morais de um gênero

Desde que foi lançada na Netflix, a série que conta a história do americano Steven Avery se tornou um fenômeno de repercussão e inspirou debates sobre o poder de um programa televisivo como espelho do que pode ser ou não a verdade

Por Meire Kusumoto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 7 fev 2016, 08h09

Seriam os filmes e séries documentais relatos indiscutíveis da realidade? Ou o olhar de quem pondera a câmera e o roteiro serve como um recorte da verdade? Ambas as perguntas, analisadas constantemente por estudiosos da área, ganharam novos contornos recentemente com o fenômeno televisivo Making a Murderer. A série em dez episódios, com cerca de uma hora de duração cada, foi lançada pelo serviço de streaming Netflix em dezembro e causou furor nas redes sociais, motivou petições online destinadas ao presidente americano Barack Obama (uma delas soma quase meio milhão de assinaturas) e colocou o dedo em uma ferida mundial: a corrupção em setores da Justiça. Ao mesmo tempo em que provocou indignação em seus espectadores, o programa também levantou questionamentos morais sobre o poder de um programa televisivo como espelho do que pode ser ou não a verdade.

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Produzido pelas documentaristas Moira Demos e Laura Ricciardi, o seriado conta como o americano Steven Avery foi preso por estupro em 1985 e, dezoito anos mais tarde, libertado após um teste de DNA determinar que ele havia sido condenado injustamente. Em 2005, porém, Avery se viu novamente atrás das grades, agora acusado do homicídio da fotógrafa Teresa Halbach, em um caso construído pela promotoria que parece ter falhas graves. Ele permanece preso até hoje. O documentário da Netflix propõe que o veredito foi equivocado e Avery, novamente, alvo de uma grande injustiça. Os episódios parecem um novo julgamento, porém feito para milhões de pessoas no mundo assistirem.

A atração tornou-se a mais recente adição a um nicho que ganhou novo fôlego no último ano, o das séries que revisitam crimes reais e investigam casos controversos que envolvem a Justiça americana, junto com The Jinx, da HBO, e o podcast Serial, da National Public Radio. Outra produção que vai, de certo modo, reforçar o gênero é a série American Crime Story, da FOX, que apesar de não ter o formato de um documentário, e sim de ficção, acompanha os bastidores do comentado julgamento do jogador de futebol americano O. J. Simpson. (ver lista)

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Para o americano Tom Nunan, ex-executivo de redes como NBC, ABC e Fox, não é coincidência que empresas como a Netflix e HBO tenham se voltado para esse tipo de conteúdo. “O drama baseado em crimes reais é uma categoria importante do entretenimento, seja em livros, no rádio, no cinema ou na televisão”, diz o especialista ao site de VEJA. “Espectadores nos Estados Unidos e no mundo estão interessados na tragédia humana e nos motivos por trás dela. Por que William Shakespeare se voltou para figuras reais, como Henrique V? Porque o comportamento de personagens em situações criminosas que realmente aconteceram é mais interessante do que qualquer ficção que escritores possam criar.”

De Shakespeare a Making a Murderer, o caminho traçado pelas produções que investigam crimes reais é longo e tortuoso, com exemplos como O Paraíso Perdido: Assassinatos de Crianças em Robin Hood Hill (1996), West of Memphis (2012) e The Central Park Five (2012). Destaca-se como responsável pelo renascimento do cinema de não-ficção na década de 1980 o filme A Tênue Linha da Morte (1988), do documentarista Errol Morris, que investigou o caso de Randall Dale Adams, condenado à morte pelo homicídio de um policial. O americano era inocente e, um ano depois do lançamento do documentário, seu caso foi reaberto e ele foi absolvido pela Justiça. Morris continua na ativa e tem entre seus próximos projetos justamente uma série sobre um crime real, que ele prepara para a Netflix.

“Estas produções exploram uma preocupação moderna de que o nosso sistema judicial está nos deixando na mão”, afirma a professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e documentarista Kristy Guevara-Flanagan (Going on 13). “Elas tratam de uma grave ansiedade social na era das análises de DNA e do crescimento da corrupção em setores da Justiça: estamos colocando homens inocentes atrás das grades? Estamos deixando homens culpados livres? Os pobres e marginais realmente conseguem tratamento justo nesse sistema judicial?”

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Inocente ou culpado? — Mas Making a Murderer, em especial, acendeu outro debate: o risco que a mistura de documentário e dramaturgia pode trazer para o entendimento e a percepção de casos pelos espectadores. A série da Netflix, filmada ao longo de dez anos, traz um tradicional e até careta formato de documentário, com cenas emotivas mescladas por depoimentos de pessoas envolvidas. “É um documentário bem dramático, há um equilíbrio típico de séries convencionais de TV, com uma contenção de informações para atingir as emoções do espectador. É um fato real organizado para que ele traga esse envolvimento, esse apelo”, afirma Andre Fratti Costa, documentarista e professor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).

O primeiro episódio mostra como aconteceu a primeira condenação de Avery, pelo estupro e tentativa de homicídio de Penny Beerntsen. Documentos, depoimentos e fotos do americano com sua pobre família de Manitowoc, no Estado de Wisconsin, se sucedem na tela, mostrando como o departamento de polícia conduziu uma investigação problemática, cheia de furos, que terminou com o acusado na cadeia. Além do inquérito, a produção se propõe a mostrar como a família Avery era mal vista na cidade, por serem isolados e donos de um ferro velho. Outro fator é que os jovens da família sempre se viram envolvidos em casos com a polícia local, em situações de vandalismo e pequenos furtos.

Em 2002, o Wiscosin Innocence Project (Projeto Inocência de Wisconsin), que trabalha para exonerar pessoas que foram condenadas injustamente, aceitou o caso de Avery e, no ano seguinte, conseguiu sua libertação, após ficar comprovado por um teste de DNA que outro homem havia estuprado Penny em 1985. O dono do ferro velho, então, abriu processo contra o condado de Manitowoc pedindo indenização de 36 milhões de dólares pelo erro e foi transformado em uma espécie de mártir, com a imprensa e a opinião pública a seu lado. Três anos depois, sua história teve uma reviravolta com o desaparecimento de Teresa Halbach, que trabalhava fotografando carros para anúncios na revista Auto Trader Magazine e que esteve no dia em que foi vista pela última vez na propriedade dos Avery para tirar fotos de uma minivan que a irmã de Steven queria vender. Ele foi preso novamente e continua na cadeia desde então, mas sempre negou qualquer envolvimento com a morte da moça de 25 anos. Alguns meses depois, um dos sobrinhos de Avery, Brendan Dassey, que tinha 16 anos na época, também foi preso, sob a acusação de que havia ajudado o tio a cometer o crime.

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A série da Netflix mostra uma parte das evidências que as autoridades encontraram nesse segundo caso, alternando entre cenas do julgamento, entrevistas com Avery, familiares e advogados e interrogatórios dos acusados com a polícia. Entre as cenas e entrevistas, os advogados de defesa de Avery aventam a possibilidade — e trabalham com ela no tribunal — de que a polícia de Manitowoc, temerosa do processo milionário que estava prestes a perder pela primeira condenação de Avery, plantou as evidências que incriminaram o americano no caso do homicídio de Teresa. E, de fato, parece haver diversas inconsistências na forma como a investigação foi conduzida. Por exemplo: o departamento de polícia de Manitowoc foi afastado das investigações, já que havia um conflito de interesse por causa do processo — e, mesmo assim, foram seus agentes que encontraram as evidências mais importantes usadas contra Avery, como a chave do carro de Teresa no quarto do americano e uma bala de rifle que continha DNA da fotógrafa na garagem do ferro velho.

A tese da defesa, no fim, parece ser a mesma que a série sustenta: Avery é inocente e foi incriminado por um departamento de polícia corrupto, que, não satisfeito em colocá-lo atrás das grades injustamente uma vez, repetiu o erro, levando junto o sobrinho dele. Os espectadores de Making a Murderer, incentivados pelo que viram na produção, bradaram nas redes sociais ao fim da maratona do seriado e criaram petições online – além da que soma quase 500.000 assinaturas, outros abaixo-assinados com muitos apoiadores pedem pela libertação e o perdão de Avery e Dassey.

O “julgamento virtual” apresentou também falas do outro lado. O promotor Ken Kratz, responsável pelo caso, afirmou que o documentário deixou de fora evidências que ajudavam a comprovar a culpa de Avery, como o fato de ele ter pedido especificamente que Teresa fosse chamada para fotografar a minivan e o depoimento de um antigo companheiro de cela do americano que contou que ele havia comentado sobre criar uma “câmara de tortura” para estuprar, torturar e matar jovens mulheres.

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Segundo as criadoras da série, Kratz, representantes do departamento de polícia de Manitowoc, parentes de Teresa e até mesmo a vítima do estupro de 1985, Penny, foram convidados a dar depoimentos para o documentário, mas nenhum deles quis participar. Em entrevistas à imprensa americana após o lançamento de Making a Murderer, alguns alegaram que sentiram que as cineastas já estavam pendendo, desde o começo, pela defesa de Avery. O resultado dessas recusas e a exclusão de algumas evidências faz da série algo unilateral.

“Documentaristas sempre enfrentam a questão sobre o que deixar de fora. E suspeito que depois de dez anos de filmagens, resolver isso não foi nem um pouco fácil”, afirma a documentarista Kristy Guevara-Flanagan. “Por outro lado, a recente entrevista em que a vítima do estupro de 1985 afirma que Moira Demos e Laura Ricciardi já estavam de cabeça feita e que trabalhavam mais para exonerar o americano do que elucidar o caso criou uma séria dúvida sobre a credibilidade do filme. Certeza é uma coisa perigosa para um documentarista — ou para o sistema judicial — e as cineastas podem ter cortado demais para o bem do próprio filme.”

É nesta linha tênue entre arte e realidade, além dos dramas da edição do material, que o documentário se vê preso em controvérsias. Porém, sendo um produto de entretenimento, a série é fruto da liberdade de seus produtores, que podem se dar ao luxo de incluir quaisquer elementos e argumentos que julgarem necessários para narrar sua história. “O cinema é uma fôrma audiovisual, é uma obra de arte”, explica Fernão Pessoa Ramos, professor do Departamento de Cinema do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O documentário não tem o dever de ser o espelho do mundo e mostrar a realidade crua. Não é jornalismo, é cinema.”

Pela reação de parte do público que viu Making a Murderer, porém, essa separação não parece estar tão clara. O tratamento dado a séries documentais como sinônimos de realidade lembra um famoso texto do crítico de cinema francês André Bazin: Ontologia da Imagem Fotográfica, parte do livro O Cinema – Ensaios (Ed. Brasiliense). “A fotografia liberou as artes plásticas de sua obsessão pela semelhança”, crava o autor, que discorre sobre o poder da credibilidade da imagem em contraponto à busca pelo realismo das pinturas. No entanto, a fotografia é parte do olhar de quem segura a câmera. Assim como acontece com um documentário.

“É ótimo quando um bom filme ou série é capaz de influenciar a opinião pública ou uma consciência social”, diz Kristy Guevara-Flanagan. “Contudo, as pessoas que assistem a esse tipo de programa precisam saber que qualquer produção tem um ponto de vista. O tempo dirá se as criadoras de Making a Murderer estavam certas ao desenhar a série da forma como elas fizeram.”

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