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Clássicos para as massas

Quatro compositores surgidos no auge da era do rock’n’roll vêm provando que a música erudita pode se tornar um excelente produto de consumo popular

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
24 out 2014, 00h00

É preciso preparo intelectual e físico para entrevistar David Lang. Intelectual, porque o americano de 57 anos, entre outros feitos, ganhou um Prêmio Pulitzer por sua adaptação musical de A Menina dos Fósforos, conto infantil do dinamarquês Hans Christian Andersen, leciona música na tradicional Universidade Yale e sua composição Man Made ganhou a concorridíssima honraria de abrir a temporada 2015 da Filarmônica de Los Angeles. Já quanto ao preparo físico… Lang mora no 5º andar de um prédio sem elevador no Soho, em Nova York. “Moro no bairro desde antes de ele virar uma Disneylândia”, diz o compositor (não sem antes reconfortar o esbaforido repórter com um copo d’água e lhe dar alguns minutos para recobrar o fôlego), aludindo à transformação do local de vizinhança decadente em centro dos descolados nova-iorquinos. “Meu professor disse que aqui era lar de alguns dos meus compositores favoritos. Philip Glass e Steve Reich são praticamente meus vizinhos”, relata. Para o público pouco afeito à sala de concertos, Lang é conhecido por ser o autor do tema de abertura de A Grande Beleza, do diretor italiano Paolo Sorrentino. Batizada de I Lie, a obra é interpretada por um coro infantil e se torna trilha do mal-estar súbito de um turista japonês. Deu tão certo que o americano já combinou uma colaboração no próximo filme de Sorrentino. “Um dos personagens será um compositor erudito. Vou escrever os temas dele.”

Lang e os outros três autores presentes nesta reportagem (o inglês de origem alemã Max Richter, o inglês Jonny Greenwood e o escocês James MacMillan) pertencem a uma facção pop do universo erudito. Não que isso seja propriamente novidade: o italiano Luciano Berio (1925-2003) e o americano Leonard Bernstein (1918-1990) já arrastavam o pé na cozinha popular, fazendo experimentos com o pop e o jazz. E muitas obras dos minimalistas Philip Glass e Steve Reich certamente não fariam feio num concerto de rock. Mas esses quatro, em especial, deram seus primeiros passos num período em que o rock era hegemônico – o que, de um modo ou de outro, afetou suas composições. “Minhas primeiras influências foram Bach e Beatles”, diz Richter, que estudou com Berio e se considera um sujeito de sorte por ter assistido aos shows do grupo punk inglês The Clash e do quarteto eletrônico alemão Kraftwerk. Como compositor, Richter funciona mais como um criador de timbres que como um escriba para orquestra. Por exemplo, em The Blue Notebooks, a obra que lhe rendeu notoriedade, ele cria climas no teclado para textos lidos pela atriz Tilda Swinton. Tal habilidade não passou despercebida aos produtores de cinema, que aproveitaram os temas desse álbum para três produções (a mais famosa foi Ilha do Medo, de Martin Scorsese). Atualmente, Richter colabora com os temas de The Leftovers, série da HBO. “São mais de dez horas de música. É um esforço comparável a correr uma maratona”, resmunga. Em 2012, ele reescreveu As Quatro Estações, do barroco italiano Vivaldi. Interpretada pelo violinista inglês Daniel Hope, sua versão passou longe da unanimidade. “Não desrespeitei Vivaldi. Pelo contrário: tirei-o do seu lugar-comum, que era tocar em elevadores”, jacta-se.

Jonny Greenwood é outro rebento da geração do rock. Guitarrista do quinteto britânico Radiohead, ele também envereda por trilhas sonoras, como as de Sangue Negro e O Mestre, ambas produções do cineasta Paul Thomas Anderson. Greenwood, no entanto, tem uma pena mais hábil que a de seu contemporâneo Richter. Fã do polonês Penderecki, com quem chegou a dividir um álbum, ele frequenta os palcos de concertos com a mesma desenvoltura que exibe nas apresentações do Radiohead. Greenwood trabalhou como compositor residente da BBC Concert Orchestra e tem sido executado por orquestras profissionais (até no Brasil: na semana passada, a Orquestra Sinfônica Brasileira executou a suíte de Norwegian Wood). Suas criações trazem influência da música de Penderecki e de outros compositores do século XX, como Ligeti e Messiaen.

James MacMillan é o mais “árido” do quarteto. Embora também integre um grupo de música folk, ele reserva para sua facção erudita obras impregnadas de religiosidade. Em The Confession of Isobel Goodie, sobre uma escocesa condenada à morte por bruxaria, a orquestra reproduz com rigor as sessões de tortura a que ela foi submetida. “Não sou o único compositor a expressar minha espiritualidade. Ela está presente em obras de Stravinsky e de diversos autores do século XX. Por exemplo, 4’33”, de John Cage (em que o pianista não toca uma nota sequer e deixa o palco em absoluto silêncio), pode ser entendida como uma oração”, argumenta. Teve suas obras executadas pela Orquestra Sinfônica de São Paulo no mês passado.

A formação de novas plateias também faz parte da agenda desses compositores. Lang pertence ao coletivo Bang on a Can, que costuma promover récitas e até operetas longe das habituais salas de concerto. Para Lang, existe uma necessidade de mudança. “Se algum compositor do século XVII viesse assistir às produções de hoje, pensaria tratar-se de uma versão modernosa do que já se fazia 200 anos atrás”, diz. Outra habilidade de Lang é como curador de espetáculos do Carnegie Hall, tradicional casa de concertos de Nova York. Ali ele mistura, sem pudor algum, o virtuosismo do pianista e compositor Franz Liszt com o minimalismo de John Cage. Greenwood, por seu turno, prepara uma série de programas de música erudita em um canal na internet – a ordem é que o público jovem passe a conhecer a obra do barroco Henry Purcell tão bem quanto o britpop do Oasis. “Às vezes, quando falo que trabalho com música erudita, tenho a impressão de que as pessoas acham que moro numa ilha de difícil acesso”, resigna-se Lang, cujos três filhos adolescentes são mais enfronhados no mundo do hip-hop que na seara do pai. Mas não há razão para desespero. A obra desses quatro compositores mostra que o monstro da música erudita é menos assustador do que parece. E pode até incentivar uma escalada ao ponto mais alto do Soho.

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