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‘Chegou a hora de uma nova onda feminista’, diz Anna Muylaert

Diretora de 'Que Horas Ela Volta?' lança 'Mãe Só Há Uma' em Berlim e fala de seu próximo projeto, que deve abordar o machismo e se baseia nas suas experiências ao ocupar uma posição de destaque

Por Mariane Morisawa, de Berlim
17 fev 2016, 10h22

“O que entendi é que a mulher pode ocupar um lugar no mercado de trabalho em posições que não sejam de destaque. No caso de uma cineasta, pode fazer um curta, ou um longa de arte. Agora, quando o filme alcança certo nível financeiro, nacional e internacional, a coisa muda. Aí não tinha cadeira para mim”

Os últimos dois anos foram agitados para Anna Muylaert. Ela rodou dois filmes ao mesmo tempo – Que Horas Ela Volta?, bem recebido em Sundance, que premiou a atuação de Regina Casé e Camila Márdila, e em Berlim, de onde saiu como o favorito do público da mostra Panorama, e Mãe Só Há Uma, exibido na mesma seção na 66º edição do festival. No ano passado, fez o lançamento em vários países e a campanha para o Oscar para Que Horas Ela Volta?. Mãe Só Há Uma também gira em torno da maternidade. O adolescente Pierre (Naomi Nero) descobre que sua mãe (Dani Nefusi) o roubou, quando bebê, e é obrigado a se reunir com sua família biológica (Matheus Nachtergaele é o pai, a mesma Dani Nefusi como a mãe, e Daniel Botelho, o irmão). Em entrevista ao site de VEJA, a cineasta fala sobre as diferenças entre os dois trabalhos, sexualidade fluida e machismo.

Você fez Mãe Só Há Uma e Que Horas Ela Volta? ao mesmo tempo. Como isso se deu? O projeto de Que Horas Ela Volta? tem 20 anos. Mãe Só Há Uma tem uns 8. Eu ganhei o edital de baixo orçamento para fazer Mãe Só Há Uma no meio da captação de Que Horas Ela Volta?. Depois eu perdi, porque um dos concorrentes entrou com um processo. O Ministério da Cultura viu que ia sobrar um dinheiro e me deu o que tinha. Ficou faltando um pouco para completar o orçamento. Eu estava para fazer Que Horas Ela Volta? e tinha um prazo para usar o dinheiro do edital. Então, depois de rodar descansei um pouco e fiz o primeiro corte. Terminei Que Horas Ela Volta? filmando este. Mas olha minha voz! Agora vou descansar.

Foi quase como ter gêmeos, não? Sim, e sendo tão diferentes. Que Horas Ela Volta? é mais clássico, para cima, para agradar ao público. É um filme de cura, de apontar saída para uma crise. Mãe Só Há Uma é entrar numa crise, é “sai do meu colo”. O outro é “vem para meu colo”. Fora que o novo é mais arriscado. A gente tem um elenco de não famosos. Queria uma atriz de teatro. Fiz um filme de câmera na mão. É uma história provocativa, de jovem, de uma tragédia. Quase diria que o longa anterior é o amadurecimento de uma coisa que vinha fazendo desde Durval Discos. E agora fui para outro caminho. Mas isso não quer dizer que eu não vou voltar para o rumo anterior, provavelmente sim, porque minha escola é mais do cinema clássico.

Como foi a experiência de fazer campanha por uma indicação ao Oscar de produção em língua estrangeira para Que Horas Ela Volta? Foi ótima. Sempre soube, graças a Deus, que a gente tinha chance, mas não era certo. Não fiquei decepcionada. Eram só cinco indicados entre 80 bons filmes.

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O filme é inspirado pelo famoso caso Pedrinho – na década de 1980, Vilma Martins raptou um bebê em Brasília, o que foi descoberto quando o rapaz tinha 16 anos. Quando pensou que dava um filme? E por que fazer sob o ponto de vista do menino? No final de É Proibido Filmar, falei com minha produtora, a Sara Silveira, sobre isso. Ela me disse que já havia um filme do cineasta Caetano Gotardo, O Que se Move. Sabia que o meu ia ser diferente. Eu tinha mais fascínio pelo personagem do filho. Imagine: ele troca tudo, tudo o que era não era. Foi isso que me interessou. Sempre que vou fazer um projeto, penso no que vai ser útil para as pessoas. Acho que de alguma maneira todo o mundo na adolescência vive isso. Porque, na infância, sua mãe o ama incondicionalmente, você é uma gracinha em todos os aspectos. De repente, com 16 ou 17, começa o “penteia o cabelo”, “troca essa roupa”, “esse amigo não serve”. Vêm as restrições, os conflitos. Quis falar dessas duas mães, a oceânica e depois a restritiva, muitas vezes autoritária ou invasiva. Quase todo o mundo passa por essa sensação.

Já foi assim? Tento não ser. Mas às vezes sou. Li muito Freud. Minha ideia de educação sempre foi de respeitar a criança. Fui rígida com ir para a escola, escovar os dentes. Mas fora isso, conceitualmente, deixei cada um ser a flor que queria ser. Um dos psicólogos disse que eu estava estragando meus filhos porque deixava eles escolherem tudo. Eu respondi que fazia aquilo porque realmente acreditava. Fiquei mal depois de ele falar isso. Agora que eles estão maiores, acho que fiz uma coisa legal. Os dois estão muito seguros de quem são. Educar filho é a coisa mais difícil do mundo.

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A questão da sexualidade fluida da juventude de agora foi incorporada recentemente. Pode falar sobre isso? Na verdade foi incorporado pouco antes de filmar. Por causa de Que Horas Ela Volta?, fiquei amiga de um monte de gente mais jovem. Voltei a sair, meus filhos agora estão crescidos. Fui a uma festa em São Paulo onde vi essa nova cena, com as meninas se agarrando, meninos de vestido e barba. Já não havia aqueles limites entre gay, hétero, homem, mulher. Essa galera jovem foi me explicando, me dando livros e filmes, como os do Xavier Dolan. Fui me inteirando de uma coisa que é nova para mim. Absorvi no personagem, porque já era uma história de identidade que poderia ficar mais interessante com essa questão do gênero.

Por que decidiu usar a mesma atriz para fazer as duas mães? É bem freudiano: você sempre está criando relações que repetem a que teve com sua mãe na primeira infância. Era baseado nesse conceito de que não importa, que aquela mãe sempre vai estar. Fora que tem essa ideia de que é uma mãe só, com os dois aspectos, uma da infância e outra da adolescência. A cara é a mesma, o sentimento é outro. Muita gente na equipe achava que podia confundir. No fim, ninguém percebe que é a mesma atriz.

Seu próximo filme, provavelmente, vai abordar o machismo. Você passou por aquela experiência com seus amigos, os cineastas, Claudio Assis e o Lirio Ferreira, que ficaram interrompendo um debate sobre Que Horas Ela Volta? no Recife. A escolha do tema teve a ver com isso? Não. Aquilo foi uma ocasião quase festiva e metafórica para uma coisa muito mais grave que aconteceu comigo no ano passado. Eu era uma Polyana. O que entendi é que a mulher pode ocupar um lugar no mercado de trabalho em posições que não sejam de destaque. No caso de uma cineasta, pode fazer um curta, ou um longa de arte. Agora, quando o filme alcança certo nível financeiro, nacional e internacional, a coisa muda. Meu filme saiu inclusive do nicho “cinema de mulher”. O sistema machista sempre está te colocando num nicho. Meu filme extrapolou isso, e aí não tinha cadeira para mim. Na verdade, o episódio serviu para explodir o que estava me incomodando. Por exemplo, eu ganhar um prêmio e vir um homem responder por mim. Numa reunião, o homem não olhar para mim, não me vendo como responsável pelo sucesso. Saquei pela primeira vez que o dinheiro do mundo está na mão dos homens. Viu a lista da revista de milionários da Forbes? São 96 homens e 4 viúvas. Eu saquei que essa de artista que não liga pra dinheiro é uma bobagem. Assim como eu sei fazer roteiro, vou ter de saber fazer contrato. Senão, vou ser tratada como café com leite.

Como pretende tratar disso no filme? O que gostaria de fazer no filme novo é mostrar o ponto de vista da mulher com algo que vivi. Você não ser considerada pelo fato de ser mulher. Chegou a hora de uma nova onda feminista, e isso está acontecendo. A mulher é educada para ser humilde, servil, simpática, para não reclamar. O homem, para ser forte, para dar soco. Então quando chega a hora do trabalho, depois da faculdade, eu, mulher, acho que tenho de ser humilde e aprender, enquanto o homem já tem excesso de arrogância, acha que está pronto, porque foi o que ouviu desde pequeno. É comum o cara se estrumbicar na primeira esquina. Só que quando a mulher está se dando bem, a estrutura não dá chefia para a mulher. Se você está preparada para ser a chefe, precisa lutar por isso. Mulher sempre pensa: “Ah, não preciso de crédito, não preciso estar na foto”. Isso vem da educação. Mas tem hora que a gente tem de ir, senão um homem vai no lugar. Ele vai ocupar a posição de poder que é sua, na verdade, quando não a sua voz. Quero falar disso, mas ainda não sei a maneira. O machismo é um conjunto de regras, não é o homem malvado, a mulher, coitada. A gente precisa começar a questionar. E às vezes é até difícil de perceber.

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