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China: como a história e a cultura influenciam na educação

É bastante provável que apenas com sua história e cultura meritocrática e amante do conhecimento, a China tivesse um sistema educacional bastante bom, superior ao de outros países subdesenvolvidos

Por Da Redação
18 dez 2011, 17h05

Capítulo 4 – História e Cultura

No meu terceiro dia na China, nosso taxista estava ouvindo um programa de rádio que, pelo tom lento e voz pausada do narrador, me chamou a atenção. Perguntei à tradutora do que se tratava e ela me disse que era uma aula de história sobre a dinastia Ming (1368-1644). Imagino que a China seja o único país do mundo em que essa cena possa acontecer. É um país completamente embebido em sua longuíssima história. Quando a dinastia Ming começou, o Brasil ainda era mata virgem e a Europa era uma colcha de principados feudais na Idade das Trevas, mas a China já era um império unificado há 1.500 anos, já tendo passado por dois períodos de apogeu (as dinastias Han (202 a.e.c. a 220 e.c.) e Tang (618-907)) e inventado a pólvora, o papel moeda e a impressão por prensa móvel.

A longa história do império chinês teve muitas oscilações – ascensões e quedas, trocas de dinastias, períodos de unificação e dissenso interno, guerras internas e externas. Mas durante a maior parte do seu período imperial – entre 605 e 1905 – uma instituição permaneceu sólida e ativa: os exames imperiais. Através deles, sucessivas dinastias selecionaram os mais preparados para se juntarem ao estado e exercerem a administração do vasto território chinês. Qualquer cidadão do sexo masculino podia participar dos exames, que aconteciam em três níveis: condado, província e nação, em escala crescente de dificuldade. Reza a lenda que os selecionados para os exames de nível nacional eram enclausurados em quartos fechados na Cidade Proibida, onde ficavam durante três dias em quartos fechados, recebendo comida e escrevendo ensaios sobre temas de relevância política, supervisionados pelo próprio imperador. Os resultados desses exames determinavam os cargos para os quais os burocratas seriam designados, com aqueles que obtinham as maiores pontuações recebendo os cargos mais prestigiosos (qualquer semelhança com o jun kao e gao kao não é mera coincidência). O fato que nos interessa desse sistema é que ele criou um sistema meritocrático por excelência. Por mil e trezentos anos, a China transmitiu a seu povo a mensagem de que a competência de qualquer cidadão – e não o berço, a posse de terras ou a proximidade ao imperador – era o caminho para o enriquecimento e prestígio social. Não são poucas as histórias de mandarins que fizeram fama e fortuna vindo de origens muito humildes. E o caminho para essa ascensão era um só: o conhecimento oriundo do estudo. Relatório do PISA sobre essa história diz o seguinte: “O sistema de exames imperiais fez com que quase todas as famílias, independentemente de seu status socioeconômico, nutrissem grandes esperanças pelo futuro de seus filhos. Essas esperanças, por sua vez, se traduziram em trabalho árduo e adaptabilidade para o aprendizado em ambientes difíceis. Essa tradição cultural perpassa toda a população chinesa.” E sobrevive até hoje.

Durante a maior parte da sua história, a China foi uma potência mundial, muito superior aos povos vizinhos, que tratava como bárbaros ou súditos, jamais rivais. O reino desse período é freqüentemente chamado de “Império do Meio”, mas é uma má tradução: o significado do termo chinês, zhongguo, é de império ou estado central; o sol ao redor do qual orbitam os planetas. De fato, segundo os dados históricos de PIB do mais respeitado historiador econômico da área, Angus Maddison, do ano 0 até 1820 a economia chinesa foi maior do que a soma de todos os países da Europa Ocidental . Essa tradição de superioridade e sua parente próxima – a ilusão de auto-suficiência – fizeram a China permanecer por tanto tempo voltada para si mesma que, não tendo nenhum interesse pelo que poderia estar acontecendo em uma civilização nova e subdesenvolvida como a européia, acabou ficando de fora das revoluções científica e industrial. O isolamento causado pela hybris custou muito caro. Quando chineses e europeus voltaram a se encontrar, o desequilíbrio de forças era avassalador. Em 1793, o governo inglês mandou Lord Macartney como enviado em missão especial à China, com o objetivo de estabelecer relações diplomáticas plenas com o país e abri-lo ao comércio com o império britânico. O imperador chinês rechaçou a missão e mandou Macartney de volta pra casa. Depois a Inglaterra se viu às voltas com a ameaça napoleônica, mas logo depois de Waterloo, em 1816, mandou outra missão à China, que foi igualmente rechaçada. Quando, em 1839, a China decidiu vetar o comércio de ópio – plantado na Índia britânica e comercializado por mercantes ingleses – a situação degringolou até que a marinha britânica foi ordenada pela rainha Vitória a bloquear os principais portos chineses, apreender navios daquele país e capturar partes de seu território, naquela que ficaria conhecida como a Primeira Guerra do Ópio.

A Inglaterra venceu, claro: a eficiência da tecnologia moderna contida em seus canhões era superior a todos os recursos disponíveis aos chineses, que foram forçados a uma rendição humilhante, acompanhada do pagamento de indenização polpuda e à perda de Hong Kong para os ingleses. Essa derrota aguçou os interesses de todos os outros grandes impérios ocidentais e também o Japão e a Rússia, e pelos próximos cem anos a China experimentou uma humilhação inédita em sua história milenar, sendo obrigada a fazer concessões aos “bárbaros”, vendo seu território invadido, ocupado ou permanentemente perdido (a cidade russa de Vladivostok foi tomada da China em 1858). O desastre culminou com a invasão japonesa em 1937 e o infame “estupro de Nanking”, ex-capital do Império, em que centenas de milhares de chineses foram mortos e dezenas de milhares estuprados pelas tropas japonesas. As seguidas derrotas frente aos “bárbaros” minou a credibilidade do governo imperial e estimulou o dissenso interno até que o império ruiu em 1911, dando início a uma era de fragmentação e conflito só superada com a chegada do Partido Comunista ao poder em 1949. A ascensão veio depois de superadas a invasão japonesa e a guerra civil que culminou com a derrota do Kuomintang e sua fuga para Taiwan. Depois de cem anos de vexames, a China recuperava sua independência e integridade territorial.

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Esse período histórico entre 1839 e 1949 é de fundamental importância para se compreender o que acontece na China de hoje. Como o ensino de História em nossos colégios é vergonhosamente ignorante do ocorrido fora do mundo ocidental, a impressão daqueles que conhecem a China apenas através da imprensa é de que o atrasado país comunista está engrenando e pode finalmente se tornar um país desenvolvido. Só essa leitura permite acreditar que Brasil e China, colegas de BRIC, estejam passando por momento semelhante. Mas, em realidade, aquilo que para o Brasil talvez se configure como a chegada a um ponto longamente sonhado e nunca dantes alcançado, para a China não passa de um retorno. Uma volta a uma posição natural de liderança mundial que o país perdeu por um breve intervalo de tempo em sua longa e vitoriosa História. Os chineses têm contas a acertar com o seu passado, e isso torna sua ascensão mais obstinada, sua tolerância por sacrifícios maior e sua determinação por voltar a rivalizar com os poderes que a humilharam tanto mais sólida.

A força do empuxo chinês, porém, não é auxiliada apenas por uma consciência histórica de séculos atrás ou pelas humilhações sofridas frente aos estrangeiros. A história recente do país, sob a liderança do “Grande Timoneiro” Mao Tse-Tung, faz com que toda família chinesa carregue consigo as marcas de um sofrimento que, em sua intensidade e duração, talvez jamais tenha sido causado por um líder a seu próprio povo na história da humanidade. A historiografia ainda não fez justiça plena a Mao. Por trás da aparência do sábio estadista com o olhar paternal escondia-se um mentecapto que conseguiria assustar até Stalin, seu rival na geopolítica e em atrocidades. Em reuniões do bloco comunista no final da década de 50, Mao chocou os camaradas ao discutir a perspectiva de um ataque nuclear contra seu país nos seguintes termos: “Se os imperialistas declararem guerra contra nós, poderemos perder mais de 300 milhões de habitantes. E daí? Guerra é guerra. Os anos passarão, e nós produziremos mais bebês do que nunca.”

Felizmente Mao não teve a chance de testar a resiliência chinesa ao inverno nuclear, mas na falta da colaboração dos inimigos externos ele se encarregou de criar amplas oportunidades domésticas para comprovar seu desprezo pela vida humana. Desde os seus primeiros anos no poder, com o país ainda se recuperando da invasão japonesa e subseqüente guerra civil, Mao envolveu a China em conflitos militares com todos seus principais vizinhos: Coréia (1950), Taiwan (1954 e 58), Índia (1962) e União Soviética (1969). Seu fervor pela revolução permanente também se voltou contra sua própria população. Disposto a acelerar a chegada da China ao comunismo pleno e, ao mesmo tempo, transformar o país em uma potência mundial, Mao deu início ao Grande Salto à Frente (1959-62), anulando o pouco que restara de propriedade privada e colocando em seu lugar comunas em que a terra e o trabalho eram compartilhados. Paralelamente, em 1957, Mao declarou que a China superaria a produção de aço do Reino Unido em 15 anos. Não satisfeito com a escala do projeto, diminuiu o prazo para três. A coletivização da terra e a mobilização de camponeses para mastodônticos projetos de obras públicas fizeram a produtividade do campo despencar.

Mas os administradores locais do PC chinês, aterrorizados pela perspectiva de não cumprirem suas cotas de produção de grãos e aço, inflavam os dados da colheita e derretiam fornos, enxadas e o que quer que contivesse aço para atingir as metas estabelecidas por Pequim. O governo central, acreditando nos relatórios provinciais, continuava exportando grãos, especialmente para a União Soviética, em troca de armamentos e equipamentos para a indústria pesada. Rapidamente a conta não fechou, e o que se viu foi provavelmente a maior onda de fome da história da humanidade, que matou entre 20 e 70 milhões de pessoas (o número exato provavelmente só poderá ser descoberto quando o PC não estiver mais no poder). Apenas quatro anos depois do fim dessa tragédia, Mao decidiu novamente convulsionar a sociedade chinesa, destruindo o que restara do estado e do próprio PC, com o objetivo de finalmente romper com a cultura tradicional chinesa e fazer nascer o “novo homem”, mais ideologicamente puro. Entre 1966 e 76, a Revolução Cultural cumpriu o roteiro da maioria das revoluções e consumiu-se a si mesma. Lideranças históricas do PC e do Exército Vermelho foram purgadas e humilhadas em praça pública, dentre elas o futuro líder do renascimento chinês, Deng Xiaoping, banido, e até seu filho, que ficou paralítico depois de ser atirado do topo de um prédio.

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O primeiro e mais importante alvo da Revolução Cultural foi o sistema educacional. Professores e intelectuais, vistos como burgueses reacionários, foram destituídos de suas funções e enviados a campos de trabalho na roça, onde seriam “reeducados”. Muitos alunos, especialmente de escolas secundárias e universidades, tiveram o mesmo destino. As escolas secundárias foram formalmente fechadas de 1966 a 68 e, depois disso, abriram basicamente para dar doutrinamento ideológico a camponeses e operários. As universidades fecharam até 1972 e depois disso começaram a receber alunos de acordo com critérios ideológicos; o gao kao só retornou em 1977 . O número de matriculados no ensino superior caiu de 534 mil em 1966 a 48 mil em 1970 . A área de pós-graduação ficou fechada por 12 anos. O Ministério da Educação foi fechado e, no período de 66 a 71, as escolas de treinamento de professores também. Não me ocorre nenhum outro caso de um sistema educacional sendo tão completamente destroçado em tempos de paz. O pesadelo só acabou com a morte de Mao, em setembro de 76.

Essas experiências são muito recentes: pais e avós dos atuais alunos foram diretamente impactados, bem como professores e diretores de escola. Cui Minghua, a diretora que nunca faltara em seus trinta anos de magistério, permaneceu os anos mais pesados da Revolução Cultural fechada em casa: sua escola parou de funcionar e seus pais não a deixavam sair à rua por medo da violência. Os avós de Juntao, o aluno que acompanhamos, tiveram de encerrar seus estudos. Bian Songquan, diretor de escola de Xangai que visitei, foi mandado para o campo aos 19 anos, por dois anos. Yuan Si, vice-diretor de departamento da universidade Tsinghua, uma das mais conceituadas da China (veja matéria na pág. XX), também teve de ficar em casa de 66 a 69 e depois, de 69 a 74, foi retirado de Pequim e enviado ao interior para trabalhar como carpinteiro. Sun Xiaobing, diretor no Ministério da Educação, também teve de ficar um ano sem fazer nada, antes de ser mandado por dois anos para trabalhar no interior.

A “fome” da China por educação não vem apenas de um passado milenar e de uma centenária tradição de meritocracia, nem da memória de cem anos em que o atraso tecnológico do país o deixou à mercê de invasores estrangeiros. Também vem de uma vivência pessoal recente de privação aguda. A maioria dos jovens chineses de hoje provavelmente teve familiares afetados (ou até mortos) pelo Grande Salto à Frente e pais e professores atingidos pela Revolução Cultural. Derek Bok, ex-presidente de Harvard, costumava dizer: “se você acha a educação cara, experimente a ignorância.” A China a experimentou, em doses maciças e forçadas. A memória desse desastre certamente serve de combustível para levar o pêndulo ao outro extremo, na construção do melhor sistema educacional do mundo.

Capítulo 5 – Políticas públicas

É bastante provável que apenas com sua história e cultura meritocrática e amante do conhecimento, a China tivesse um sistema educacional bastante bom, superior ao de outros países subdesenvolvidos. A Revolução Cultural, porém, mostra que história e cultura não são suficientes para contra-arrestar os efeitos de más políticas públicas. O grande mérito da China contemporânea – em especial de seu principal líder, Deng Xiaoping, que ficou no poder entre 1978 e 1992 – foi de não se acomodar com as vantagens já presentes nos alunos chineses e, pelo contrário, pensar de maneira estratégica, deliberada, intensa e constante para complementar essa tremenda energia vinda “de baixo” com boas políticas públicas vindas “de cima”.

O mais incrível desse esforço chinês é o seu custo. Em 2009, o governo chinês gastou 3,6% do PIB em educação. Quando começou sua revolução, gastava ainda menos: 2,9% do PIB foi o gasto médio no período entre 1979 e 1992 . O setor público brasileiro, para efeito de comparação, aumentou seu gasto de 4,1% para 5,3 % do PIB nos últimos sete anos e, mesmo com a qualidade do ensino não tendo melhorado em nível remotamente semelhante, continuamos fixados nesse dado como se fosse a salvação da lavoura. O limite da profundidade do nosso debate sobre o assunto parece ser se, nos próximos dez anos, esse percentual deve ir pra 7% (como sugeriu o MEC), 8% (segundo o relator do Plano Nacional de Educação no Congresso) ou 10%, como defendem os movimentos sociais, organizações estudantis e sindicatos. Seria produtivo travarmos um debate nacional para entender como é que a China consegue criar um sistema excepcional de ensino gastando entre a metade e um terço daquilo que os nossos ativistas estimam ser o ideal para o país. Quem sabe assim conseguimos avançar no debate e focar naquilo que efetivamente é feito pelo governo com o dinheiro que arrecada, ao invés do montante.

De tudo que eu tive a oportunidade de ver e conhecer na China, sem dúvida o mais importante para o Brasil é justamente esse conjunto de medidas. Porque a China conseguiu fazer, brilhantemente, aquilo que o Brasil ainda precisa: dar um salto de qualidade educacional que pode conduzir o país no rumo do desenvolvimento contínuo. A experiência chinesa é muito relevante para o Brasil porque, ao contrário de países europeus e suas colônias, que construíram seus sistemas educacionais ao longo de séculos e o fizeram em posição de liderança mundial em termos de desenvolvimento, a China deu seu salto em trinta anos, lidando com todos os problemas agudos do subdesenvolvimento enquanto o fazia. Entre o país destroçado pela Revolução Cultural e aquele que colocou uma província no topo do PISA se passou apenas uma geração. Precisamos entender as causas desse sucesso.

A ligação entre educação e projeto de nação. A primeira delas é que, desde os primeiros dias de Deng, ele conseguiu demonstrar ao país e seus colegas de partido que a importância da educação extrapola seus próprios limites. Ter um sistema educacional de qualidade é peça fundamental no desenvolvimento do país. Para a educação receber a atenção de que necessita para avançar rapidamente, é preciso que ela esteja inserida no projeto de nação, e que essa vinculação seja feita no nível mais alto do poder. Em um discurso de maio de 1977, antes mesmo de ser formalmente premiê, Deng disse o seguinte: “A chave para se alcançar a modernização é o desenvolvimento de ciência e tecnologia. E a não ser que prestemos especial atenção à educação, será impossível desenvolver a ciência e tecnologia. Conversa furada não vai levar nosso programa de modernização a lugar nenhum; nós precisamos ter conhecimento e gente preparada.” Que a presidente Dilma, mulher altamente instruída e confessadamente amante da cultura e do saber, não tenha conseguido ainda falar (quanto mais tomar ações concretas) algo remotamente parecido em um ano de mandato é vexatório e preocupante.

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O segundo fator importante é o pragmatismo. Desde o período Deng, a China vem sacrificando ideologias sempre que elas conflitam com o resultado a ser alcançado. Na área da educação, isso se expressa em áreas pequenas e grandes. A maior delas é sem dúvida no pensamento sobre o papel do professor. A China se deu conta de que precisava de bons professores para dar o seu salto, e em grande quantidade. Mas então viu suas carências: não tinha muitos bons professores, nem os mestres capaz de lhes formar. Bolou então um sistema em que, como vimos no capítulo 3, o professor sai da faculdade mediano e então é constantemente trabalhado e ajudado para que, com muito esforço e algum talento, dê uma aula excepcional. Esse caminho requer muitas horas de trabalho. Também requer que o professor trabalhe em grupo com outros professores. Mas um sistema com muitos professores passando muitas horas fora de sala de aula tem um problema grave: em condições normais, é muito caro. E a China, alquebrada, não tinha e não tem esse dinheiro. Teria se investisse 10% do PIB em educação, mas sabe que uma carga tributária dessa monta sufoca o desenvolvimento do país. E como a educação é um meio para esse desenvolvimento e não um fim em si mesmo, não faria sentido atingir o objetivo intermediário sacrificando o objetivo final. Como, então, resolver a quadratura desse círculo? Com três ousadias, derivadas de um conceito norteador. O conceito é que o fundamental é que os alunos estejam em contato com um bom professor.

As ousadias são as seguintes. A primeira é aumentar bastante o número de alunos em sala de aula, para acima de 40 nas áreas desenvolvidas e acima de 50 no oeste rural. Em décadas passadas, esses valores eram ainda maiores. Hoje, a pesquisa acadêmica em educação mostra que o número de alunos em sala de aula não está relacionado com a qualidade do ensino, mas quando a China montou suas escolas essa literatura ainda não existia. Os chineses entenderam que é melhor ter 40 alunos em contato com um bom professor do que 20, em duas salas, aprendendo com um professor bom e outro ruim. A segunda é diminuir radicalmente o número de funcionários administrativos, que não dão aula. Na província de Xangai, são XX 0,28 funcionários para cada professor. No Brasil, são 1,5. Ou seja, XX 5 vezes a mais. Se o fundamental é o professor, aquilo que é menos importante precisa ser sacrificado. A terceira é na estruturação da carreira e remuneração do professor. A maioria dos sistemas educacionais do planeta paga a mesma coisa a todos os professores com os mesmos níveis de experiência e formação. Coube a um país nominalmente comunista tratar os diferentes de forma diferente. Porque pagando a todos a mesma coisa se pagaria uma miséria. E se o sistema depende do esforço de um profissional de talento mediano, então é fundamental que o sistema de compensação recompense esse esforço, do contrário ele não acontecerá.

Claro, é mais fácil ser pragmático em uma ditadura, onde não há sindicatos com quem negociar nem lideranças comunitárias ou formadores de opinião a convencer. Mas seria simplista e equivocado atribuir todo o mérito ao poder coercitivo do estado. A experiência histórica da própria China mostra que quando a repressão chegou ao zênite os resultados caíram ao nadir. Mesmo em uma ditadura, não se pode forçar uma pessoa a escolher a carreira de professor, muito menos exerce-la com competência, de forma que os dilemas sobre como atrair e reter gente talentosa no magistério são parecidos na China e nas democracias ocidentais. Por último, basta ver o resultado do próprio PISA 2009 para notar que o sistema político não explica muito: excetuando as províncias chinesas, todos os outros países top 10 eram democracias, enquanto que, dos últimos 11 colocados, 6 são ditaduras.

A remuneração dos professores é apenas mais um exemplo de outra macro-política fundamental, a meritocracia. Todos na educação chinesa são cobrados e valorizados por seus resultados. Os alunos precisam ir bem no jun kao para irem a uma boa high school, depois precisam ir bem no gao kao para entrar em boa universidade. Precisam de boas notas e comportamento para ocupar as posições de liderança em suas turmas. Os professores precisam de esforço, boas aulas e aprendizado dos alunos para receber bonificações e aumentos. Os melhores professores viram diretores. Os bons diretores das escolas medianas são transferidos para escolas melhores, depois para as escolas-chave. Depois para a administração municipal, então da província, até chegarem ao Ministério. Cada pessoa é valorizada de acordo com o que agrega ao sistema.

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Outra característica chinesa importante é a abertura ao exterior. Como a maioria dos países desenvolvidos que deu saltos, a China não se constrange em copiar aquilo que deu certo alhures (ao mesmo tempo em que se esforça para manter sua cultura protegida de influências perniciosas: até 2001, só 10 filmes estrangeiros eram permitidos por ano no país. Atualmente, são 20 ) . Os governos fazem um esforço constante para expor seus funcionários e intelectuais a tudo o que acontece no mundo, para que eles possam selecionar o melhor e traze-lo à China. Zhang Minxuan, atual presidente da Shanghai Normal University e chairman do comitê de Xangai no PISA, é um bom exemplo. Ele estudou em Oxford, trabalhou no Banco Mundial e Unesco, onde me contou que conheceu bem os sistemas educacionais de 30 países. Até as secretarias provinciais de educação têm áreas de cooperação internacional. Em um sábado, almocei com Yang Weiren, diretor dessa área em Xangai. Comecei me desculpando por importuná-lo em um sábado e dizendo que não precisava ter vindo de terno, mas ele me explicou que não havia problemas: naquela manhã havia recebido delegação de Cingapura, e à tarde iria preparar apresentação para visita de delegação francesa. Me contou que Xangai tem 61 cidades-irmã ao redor do mundo e que se beneficia da troca de experiências educacionais com elas. (Dentre essas cidades estão Manaus e São Paulo).

O gradualismo é outra marca do sistema chinês. O país se vale do fato de ter 32 províncias, 2.858 condados e mais de 40 mil cidades para fazer experimentações. O que dá certo é compartilhado com outras províncias, até se tornar política nacional. Mas só depois de ser testado e aprovado em pequena escala. É um sistema que impede a existência de falhas como o Enem, por exemplo.

Outra marca registrada é o coletivismo. Como já mencionamos, o sistema está organizado em círculos concêntricos, que se “abraçam” e se polinizam constantemente. Os professores têm seus grupos de estudo, as escolas têm seus distritos, os distritos são ajudados pelas províncias, que interagem com o governo nacional. Todos competem, mas todos se ajudam. Importante também é a formação constante que a educação chinesa dá a todos os seus profissionais. Além do sistema de grupos de estudo de professores, em Xangai há também treinamento compulsório, todo ano, ministrado pelo governo local: uma semana em tempo integral nas férias de verão e dois dias nas férias de inverno. Em relação a diretores é a mesma coisa: mesmo o sujeito sendo um grande professor, pra ser efetivado precisa fazer um curso de administração escolar. Até os burocratas são constantemente estimulados a passar temporadas em universidades chinesas e do exterior. O sistema confia no talento e esforço de seus profissionais, mas não permite que o sistema dependa apenas das vontades individuais. O trabalho é institucionalizado.

Outra característica importante é o planejamento de longo prazo e, claro, a capacidade de cumprir as metas estabelecidas.

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O governo chinês vem criando, desde a década de 80, planos de horizonte de tempo longo para o seu sistema educacional. Os mais antigos versavam sobre a universalização do acesso à escola e erradicação do analfabetismo. Os mais recentes falam da criação de 100 universidades de nível internacional. A grande maioria é cumprida, e sua elaboração é feita de forma cuidadosa justamente para que seja cumprida. Foi curioso conversar com um dos diretores do Ministério, porque ele se referia aos números dos planos – cada um é identificado por três ou quatro algarismos, como os projetos de lei brasileiros – da mesma forma que um pastor evangélico cita capítulos e versículos da Bíblia: como se aquilo fosse um axioma, e conhecido por todos. Pensei em explicar pra ele que no Brasil também fazemos planos decenais de educação, mas que na maioria dos casos suas recomendações não “pegavam”, mas achei que seria difícil explicar o conceito para o sujeito.

Um elemento também importante é o material didático. Inicialmente, ele era o mesmo para todo o país, mas atualmente cada província escolhe ou desenvolve o seu. Em Xangai, onde toda sala de aula tem um data show, as autoridades locais usam a internet para abastecer os professores de materiais para os arquivos de PowerPoint e dicas de como ensina-los, aula a aula. O professor decide como quiser montar o material e pode compartilhar sua apresentação com outros colegas pela rede. Claro, isso só é possível porque as províncias chinesas têm um currículo padronizado, que especifica o que deve ser ensinado a cada aula, com objetivos claros de habilidades e conhecimentos que o aluno deve dominar a cada semestre. Na maioria do mundo é assim; o Brasil é um dos poucos lugares em que prevalece a idéia de que é democrático que cada professor e escola decidam o que ensinar e como, atendo-se apenas a parâmetros curriculares genéricos.

Termino com uma inovação que, por sua origem e execução, me parecem uma síntese acabada das virtudes do sistema educacional de Xangai. Quando todos os esforços acima fracassam e uma escola continua não indo bem, ela passa por um processo chamado “empowered management” (“administração empoderada”, em tradução literal; “sob nova direção”, em tradução livre). É o seguinte: o governo faz uma licitação pública, pedindo às escolas de alta performance que elaborem um plano para melhorar o desempenho da escola ruim. O melhor plano é selecionado. A escola top então assina um contrato com a escola ruim, em que basicamente assume a responsabilidade por sua administração por um período de dois anos. Durante esse tempo, um alto funcionário da escola boa – normalmente o vice-diretor – se desloca para a escola ruim, na companhia de sete ou oito de seus melhores professores, e ficam nela pelo menos dois dias por semana, em tempo integral. O governo distrital dá recursos adicionais à escola boa, para que ela possa contratar profissionais pra suprir a carência gerada por aqueles que saíram. Se a escola ruim melhorar depois desses dois anos, a escola boa recebe um prêmio em dinheiro, que pode ser gasto em melhorias na escola.

O autor da idéia foi Zhang Minxuan, um dos grandes pensadores da educação chinesa, que já encontramos antes. Ele me contou sobre o surgimento da idéia, que veio dos Estados Unidos. Na década de 80, os governos de lá começaram a criar programas para que empresas administrassem más escolas. Mas o programa não funcionou, porque as empresas só queriam saber do lucro, então iam embora depois que recebiam o dinheiro. O Dr. Zhang implementou a idéia em sua escola, com a alteração crucial de que escolas, e não empresas, cuidassem de outras escolas. O piloto deu tão certo que foi adotado como política pública. Atualmente em Xangai há 50 escolas operando sob esse contrato. Aí estão o pragmatismo, a meritocracia, o coletivismo, o gradualismo e a abertura ao exterior em ação. Aí está o melhor sistema educacional do mundo.

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