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O grande bazar global

Para Esther Dyson, a sede de conhecimento é crucial para compreender as diferenças - e similaridades - entre pessoas de diferentes origens

Por Esther Dyson
1 Maio 2014, 18h05

Tenho um apartamento em Nova York há quase 40 anos. Mas, na verdade, morei nele menos da metade desse tempo, em função de uma rotina atribulada de viagens. Gosto disso; minha experiência em outros países ensinou-me a importância de manter a mente aberta e me levou a fugir do lugar comum – não apenas para tornar a vida mais interessante, mas também para entender, significativamente, que as coisas não são iguais de todos os ângulos.

As lições mais interessantes muitas vezes estão na vida mundana – nos aspectos da vida cotidiana que os locais não valorizam, e que os turistas tendem a ignorar. Por exemplo, no hotel Western em que me hospedei na Coreia do Sul, havia um pictograma ao lado do vaso sanitário que ensinava como usá-lo corretamente – isto é, sentar no assento em vez de agachar-se sobre ele, como se faz em um vaso tradicional da Coreia do Sul.

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Em 1989, durante uma viagem à Estônia – que na época ainda era parte da União Soviética – pedi à minha intérprete, uma dentista clandestina, que me levasse à clínica onde ela trabalhava. Não apenas pude ver o equipamento – velho e esverdeado – mas descobri que a minha intérprete e as suas colegas estavam incrementando o salário que recebiam do governo com pagamentos diretos (e muito mais volumosos) atendendo turistas finlandeses. Quando tivessem dinheiro suficiente guardado, elas explicaram, iam comprar um novo equipamento e abrir seu próprio consultório.

Minha guia-dentista também me contou sobre o seu trabalho na divulgação de “propaganda sanitária” – isto é, visitando escolas locais para ensinar as crianças como escovar os dentes. Mas muitas delas, ela disse, não tinham dinheiro nem para comprar escovas de dentes. Eu não fazia a menor ideia que a caixinha de fio dental que tinha no bolso – que logo dei a ela – era tão valiosa.

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Na mesma época, em um escritório estatal em Moscou, tive outra pequena, mas poderosa visão. Quando o telefone tocou, ninguém se mexeu – uma reação angustiante para um americano, para quem um telefone tocando exige uma reação imediata em antecipação a uma oportunidade. Quando perguntei o porquê, os funcionários explicaram o que para eles era óbvio: “As pessoas só ligam para os escritórios para falar de problemas”. Evidentemente, acreditavam que resolver problemas não era parte da função deles.

O comunismo tardio foi mesmo um período estranho. Um amigo húngaro que trabalhou em um hotel em Budapeste naquela época contou uma experiência que surpreendeu até ele mesmo. Quando pediram que ele levasse várias garrafas d’água para um quarto que ele nem ao menos sabia que existia, ele descobriu um grupo de homens usando fones de ouvido, escutando o que acontecia nos outros quartos.

Mais recentemente, em 2008, tirei um fim de semana para visitar Baku, no Azerbaijão, cidade natal da minha amiga e companheira de viagens Tatyana Kanzevalli – uma ex-campeã de xadrez que já tinha jogado muitas vezes com Garry Kasparov, que também é de Baku, durante a juventude. A oportunidade de conhecer a cidade através dos olhos de um local e ouvir histórias sobre tudo, de professores do ensino médio à escassez de comida, foi preciosa.

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Se eu fosse mal informada, talvez tivesse pensado que a palavra “aliyev” significava “rua”, porque ela estava em quase todas as placas de rua. Mas era o nome do presidente, Heydar Aliyev, que foi sucedido pelo filho, Ilham, em 2003, que está na presidência até hoje.

Durante a nossa visita, minha amiga e eu fomos a um orfanato para onde ela havia enviado doze computadores no ano anterior. Alguns tinham sido distribuídos entre os administradores, mas muitos agora estavam disponíveis para serem usados pelas crianças em atividades escolares. Eu me lembro nitidamente dos gritinhos de felicidade que as crianças davam correndo pelo pátio, brincando com as canetas que soltavam bolhas de sabão que havíamos levado para elas.

Finalmente, dois anos atrás, em Cuba, depois de anunciar no Twitter que procurava por empresários no país, tive a oportunidade de conhecer muitos dissidentes. O encontro foi fascinante, apesar – ou talvez por isso mesmo – dos olhares furtivos de dois homens atentos, que nos olhavam por trás dos seus jornais na mesa ao lado.

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Mas a sede de conhecimento é útil não só em países estrangeiros. Ela é, de fato, crucial para compreender as diferenças – e similaridades – entre pessoas de diferentes origens, mesmo aquelas que vivem a apenas algumas cidades ou quilômetros de distância.

É precisamente esse estado de espírito que pretendo levar com minhas viagens pelos Estados Unidos para o concurso The Way to Wellville, no qual cinco comunidades vão competir para melhorar sua saúde pública. O diretor executivo da competição, Rick Brush, e eu já visitamos muitas das 10 a 15 comunidades que vamos conhecer antes de escolher cinco participantes.

Uma das paradas foi Lancaster, na Pensilvânia, onde conhecemos um grupo de cidadãos preocupados com a saúde e o país em uma escola primária. Os professores contaram-nos sobre uma experiência em que fizeram os alunos levarem as sobras de uma refeição de um restaurante em sacos de papelão, na esperança de ensiná-los que é melhor comer sobras amanhã do que comer demais agora (e na minha perspectiva, do Vale do Silício, o restaurante pode aumentar sua renda vendendo anúncios nas laterais dos sacos de papelão).

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Em Niagara Falls, Nova York, encontramo-nos com um grupo maior, incluindo o prefeito, Paul Dyster, que no ano passado celebrou o primeiro casamento gay do Estado, e um pastor que também foi ao casamento, mas carregando uma faixa de protesto. Apesar das diferenças, os dois foram ao encontro para discutir a saúde da comunidade, com uma atitude amigável e construtiva.

Entretanto, o pastor expressou alguma frustração com o fato de a polícia vigiar a comunidade a pé, e não de carro. Algumas horas depois, no trânsito, enquanto fazíamos uma visita de reconhecimento, nosso caminho foi bloqueado por duas viaturas, paradas lado a lado no meio da rua, com os policiais conversando. Duvido que eles estivessem discutindo a saúde deles – ou a saúde da sua comunidade.

Esther Dyson, diretora da EDventure Holdings, é empresária e investidora em tecnologias e nos mercados emergentes. Seus interesses incluem a tecnologia da informação, cuidados com a saúde, aviação privada e viagens espaciais

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(Tradução: Roseli Honório)

© Project Syndicate, 2014

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