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‘O governo fez bancos do Estado pagarem as suas despesas – e isso não é pedalada”

Para José Roberto Afonso, um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal, o que o governo fez foi muito mais sério do que atrasar repasses - ou "pedalar"

Por Ana Clara Costa
22 abr 2015, 07h42

Do dia para a noite, um jargão econômico que até pouco tempo era usado apenas por especialistas em contabilidade ganhou relevância nacional. O problema é que foi pelo motivo errado. As chamadas ‘pedaladas fiscais’ são atrasos em pagamentos feitos pelo governo, que se intensificaram durante a primeira gestão de Dilma Rousseff. Demonstram uma gestão falha de recursos públicos, mas não são crime. Coisa bem diferente ocorre quando bancos públicos assumem, nas datas devidas, despesas do Tesouro – sem ter recebido o dinheiro para tal. Isso configura empréstimo, e é vedado pela lei brasileira. Quem atenta para a diferença é o economista José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) e um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), sancionada no governo de Fernando Henrique Cardoso.

A confusão começou depois que o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou que os bancos públicos arcaram com as despesas de programas como o Bolsa Família, justamente porque o Tesouro atrasava os repasses devidos às instituições. A oposição se movimenta em torno do tema para tentar construir um argumento jurídico que sustente um pedido de investigação da presidente Dilma. Já o governo se defende dizendo que as ‘pedaladas’ não devem ser investigadas porque sempre existiram. Afonso concorda que os atrasos são corriqueiros na gestão pública. Mas não os empréstimos da Caixa ao Tesouro. “A discussão está fora de foco. O governo fez justamente o contrário. O pagamento foi feito, em dia. Só que não foi feito pelo governo, e sim por terceiros. Por bancos como a Caixa e o Banco do Brasil. Esse é o centro da decisão do TCU”, afirma.

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O que são as ‘pedaladas fiscais’? Antes de tudo, o termo “pedalada fiscal” não é o mais apropriado para definir o que está acontecendo. Essa falta de precisão confunde os leigos. E essa confusão é explorada por aqueles que precisam defender o indefensável. Pedalar é o jargão utilizado por economistas para se referir a atrasos de pagamento. É algo normal, todo governo faz e em todo lugar do mundo. E não remonta somente a Fernando Henrique Cardoso. Se alguém pesquisar, vai ver que desde que Pedro Cabral chegou nestas bandas e Tomé de Souza montou o primeiro governo de colônia, isso deve existir no Brasil. Essa questão das pedaladas faz perder o foco. O que o governo fez foi justamente o contrário disso.

Como assim? Se o Tesouro deixou para pagar uma despesa numa data posterior àquela em que devia, isso, por si só, não configura crime. Pagamentos foram postergados até o ano passado como uma forma de melhorar artificial e temporariamente o resultado primário, que é a economia que o governo faz anualmente para pagar os juros da dívida. Esse governo federal acumulou tantos compromissos de gasto, mais de 200 bilhões de reais, que a expressão “restos a pagar” perdeu o sentido. Deixou de ser uma exceção e se tornou regra. Isso é má gestão, é política fiscal arcaica. Mas, em si, não configura crime fiscal. O debate que importa, no entanto, é outro: algum banco pagou despesas do Tesouro, sem que o Tesouro lhe houvesse repassado recursos para tal finalidade específica? O Tribunal de Contas da União (TCU) apurou evidências nesse sentido e aguarda explicações das autoridades envolvidas. Isso é empréstimo e não pode ocorrer quando o banco pertence ao governo que ordenou o pagamento.

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Por que um banco não pode pagar as despesas de seu principal acionista? Porque o dinheiro não é dele, e sim dos depositantes. Imagine uma situação como essa numa empresa privada. O banqueiro, ao sair para almoçar, passa pelo caixa do banco e pega um pouco de dinheiro dos correntistas para consumo próprio? É claro que não. Isso não pode acontecer em nenhum banco, em nenhum lugar do mundo. É crime pela Lei do Colarinho Branco. Num banco público, a situação é mais grave ainda porque há outra lei, a de Responsabilidade Fiscal, que proíbe expressamente que haja empréstimo do banco federal para a União. Sobre isso, nem a Advocacia-Geral da União (AGU) discorda. O que ela tem alegado nos últimos dias é que, ao pagar despesas do Tesouro, os bancos públicos fizeram ‘prestação de serviços’.

Esse argumento é pertinente? Se essa defesa for aceita, então todos os correntistas de todos os bancos oficiais poderão pleitear o fim da cobrança de juros no cheque especial. No dia em que vencerem suas contas, o banco deverá pagá-las mesmo que você não tenha saldo. Você o ressarcirá lá na frente, mas sem pagar juros, por essa “prestação de serviço”. Alguém acha que isso existe? Que outros contratos iguais a esse existem no Banco do Brasil ou na Caixa? Tenho certeza que não. Aliás, tenho uma questão paralela. Será que nessas estranhas operações foram cobrados e pagos os impostos que incidem serviços bancários? Os ministros que defendem essa tese da prestação de serviços deveriam esclarecer esse ponto.

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Por que a LRF foi elaborada com esse artigo específico que proíbe os empréstimos? A motivação da LRF era evitar a repetição da crise dos bancos estaduais. Nos Estados, era comum essa prática de empréstimo dos bancos à administração. Jamais se pensava que aquelas práticas, irresponsáveis tanto do ponto de vista fiscal, como do ponto de vista bancário, viessem a se repetir no plano federal. O projeto de lei foi elaborado entre 98 e 99, quando se estava concluindo o processo de reestruturação dos bancos estaduais, inclusive o programa do PROER, que custou caro, mas teve resultados reconhecidos até em auditorias realizadas posteriormente no governo Lula. Para não repetir erros e custos, se colocou a vedação geral, de que proprietários não devem se financiar junto a seus bancos. A proposta foi aprovada pelo Congresso, sem nenhum questionamento.

Se pedaladas são práticas corriqueiras, o que motivou o TCU a abrir um processo? A imprensa noticiou no ano passado que a Caixa pediu à AGU para instalar uma câmara de arbitragem porque se sentia prejudicada pelo fato de, a partir de 2013, ter começado a pagar benefícios, como do bolsa-família e do seguro-desemprego, sem ter recebido os recursos correspondentes do Tesouro. O representante do Ministério Público junto ao TCU abriu uma representação para que fossem apurados os fatos e os técnicos do Tribunal elaboraram um parecer impecável tecnicamente, com evidências concretas de que pagamentos foram feitos sem cobertura financeira e sem os devidos registros.

Como essas operações de valores altíssimos foram feitas sem que ninguém percebesse? Cabem às autoridades chamadas pelo TCU a tarefa de explicar. O Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), onde estão registradas as contas do Tesouro, tampouco mostra nada sobre isso. Nesse contexto, mais até do que regras fiscais, foram desrespeitadas regras financeiras e bancárias básicas. É inacreditável que o Banco Central não tenha visto o que ocorria. O precedente é gravíssimo, pois como o BC poderá aplicar uma interpretação diferente se uma situação como essa acontecer com bancos privados? O BC exerce a supervisão do sistema bancário e deveria ter sido informado de tudo isso, até para exigir controles gerenciais paralelos sobre todo o relacionamento de bancos com governos e também com seus controladores. Os dirigentes dos bancos, bem como seus conselheiros fiscais e auditorias externas. também deveriam se manifestar. Guardadas as devidas proporções, não fica muito distante do caso da Petrobras. Diferentemente da estatal, no caso dos bancos públicos, há balanço. Só que ele não revela clara ou objetivamente toda a extensão das transações entre o banco federal e o Tesouro Nacional.

Diante do amplo número de envolvidos e dos altos cargos que ocupam, são grandes as chances de as acusações não darem em nada? Acredito e espero que não. Até aqui, muita coisa já aconteceu: a imprensa fez o papel de maior órgão de controle social do país, quando denunciou as operações no ano passado, e as instituições responsáveis pelo controle formal, o TCU e o Ministério Público, abriram uma investigação e a estão conduzindo com a maior acuidade técnica possível, sempre com dúvidas e denúncias bem fundamentadas. Tenho certeza que o Ministério Público Federal (MPF), se entender que é o caso, com base na técnica e sem pressão política, levará à frente mais esse caso, como outros em que vem trabalhando.

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