Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

‘Nova lei é avanço civilizatório que já vem tarde’, diz ex-ministro do Trabalho

O economista Walter Barelli acredita que aprovação da PEC acarretará em demissões – e que a realidade do trabalhador doméstico brasileiro deverá se assemelhar, cada vez mais, à de europeus e norte-americanos

Por Ligia Tuon
24 mar 2013, 08h59

O progresso da economia que estimulou a criação de milhares de empregos nos últimos anos será responsável pelo fim de, ao menos, um tipo de trabalho: o da empregada doméstica. Caricatura feminina inconfundível, personagem literária, protagonista de novelas e presença devotada nos lares da classe média brasileira, a doméstica será profissão do passado, assim como ocorre nas nações desenvolvidas. A Proposta de Emenda da Constituição (PEC) nº 66/2012, também chamada de PEC das Domésticas, deve ser aprovada pelo Senado na próxima semana e prevê a ampliação dos direitos da categoria – e, consequentemente, o encarecimento de seu custo para as famílias. Na avaliação do ex-ministro do Trabalho, o economista Walter Barelli, o amparo constitucional significa, paradoxalmente, a melhora e o fim do serviço – pelo menos da forma como ele foi prestado até hoje.

Em entrevista ao site de VEJA, Barelli argumenta que, da mesma forma que o Brasil avança na melhora das condições de trabalho e de massa salarial, é notório que alguns tipos de profissão deixem de existir – ou se tornem escassas. “A nova lei é um processo civilizatório que já vem tarde. Como consequência, o trabalho doméstico tende a ficar restrito a pouquíssimas famílias. As domésticas não vão mais submeter-se ao que é exigido delas”, diz o economista, que também foi secretário de Relações com o Trabalho dos governos de Mário Covas e Geraldo Alckmin.

Leia também:

Brasil tem o maior número de empregados domésticos no mundo

Continua após a publicidade

O aumento dos salários dessas profissionais já é realidade em todas as regiões do país – poucas são as que ganham o salário mínimo de 678 reais. Contudo, mesmo com a melhora da vida financeira e ampliação dos direitos, que ficarão próximos do que é previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a tendência é que prefiram profissões menos desgastantes. “O salário de uma balconista, por exemplo, pode até ser equivalente ao pago a uma empregada doméstica. Mas, para muitas mulheres, trabalhar como empregada não é um bom emprego. Não pelo que ela faz, mas pelo que é exigido dela”, afirma o economista. Confira trechos da entrevista.

A evolução da educação e do mercado de trabalho diminuiu a oferta de empregadas domésticas. Qual é o impacto dessa situação no mercado de trabalho hoje?

Temos de olhar para o que aconteceu em outros países, como Estados Unidos e alguns da Europa, onde não vemos com tanta frequência a figura da empregada doméstica, a não ser nas famílias muito abastadas. No Brasil, o emprego em si não é dos melhores. Na verdade, é dos piores em termos de regulamentação. As pessoas acabavam sujeitando-se ao trabalho doméstico por falta de opção, mas, agora, não há muita gente que quer desempenhar essa função. Há outras oportunidades no mercado de trabalho. Essa é a grande mudança. Quem quer trabalhar, encontra uma vaga. Pode não ser o emprego dos sonhos, mas há muitas opções. O salário de uma balconista, por exemplo, pode até ser equivalente ao pago a uma empregada doméstica. Mas, para muitas mulheres, trabalhar como empregada não é um bom emprego. Não pelo que ela faz, mas pelo que é exigido dela.

Continua após a publicidade

É um caminho sem volta?

Só terá volta se houver um grande acidente de organização da sociedade. O fato é que, no Brasil, mesmo com o número de empregadas domésticas caindo, alguém vai ter de continuar limpando casas, fazendo comida e lavando a louça, caso os proprietários não possam fazer esses serviços. O que vai mudar é a forma como esse trabalho será apresentado. Nos Estados Unidos, as famílias contratam empresas de limpeza doméstica que fornecem cinco ou mais pessoas para fazer o serviço em uma hora.

Antigamente, a garota prendada sabia cozinhar, bordar, passar. O trabalho da mulher dependente era uma carga enorme. Quando as mulheres começaram a trabalhar fora de casa, as feministas falavam em jornada dupla porque, realmente, o trabalho era dobrado. Nesse contexto, a empregada doméstica entrou para substituir a mulher que trabalhava fora nos serviços domésticos. Mas isso não deverá existir mais com frequência. O casal vai ter de se estruturar para fazer as tarefas ou pagar muito caro para que alguém o faça diariamente.

Continua após a publicidade

A queda da oferta de trabalhadores domésticos pressionou a formalização da classe?

A informação foi democratizada e houve melhora na educação. Tudo isso contribuiu para que as pessoas tivessem novas ambições. Com novas ambições, elas começaram a procurar outras coisas. O fato é que o Brasil está ficando mais civilizado. No início, a democracia aparece só como uma tintura, já que os direitos vão aumentando com o passar do tempo. À medida que vamos aperfeiçoando a nossa democracia, novos direitos vão aparecendo. O trabalho evolui à medida que a sociedade evolui. Efetivamente, a empregada é vista, muitas vezes, como um cidadão de segunda classe – e as pessoas não querem mais isso.

Há economistas que são contra a PEC das Domésticas porque acreditam que o Brasil, primeiro, precisa fazer com que a atual lei que ampara a classe seja cumprida, antes de ampliá-la. O senhor concorda?

Essa nova lei é um avanço civilizatório que já vem tarde. Nem toda empregada doméstica tem férias, folgas ou carteira assinada, o que já é lei há muito tempo. Ou seja, não seremos um país maravilhoso por causa da PEC. O empregador ainda se aproveita da ignorância do trabalhador.

O impacto da PEC no mercado pode ocasionar demissões?

Com certeza haverá muita injustiça e muitas empregadas serão demitidas. O empregador particular não tem todo o conhecimento da legislação trabalhista e essa nova situação vai entulhar a Justiça do Trabalho de processos. Porque as domésticas, agora, vão querer cobrar o que não tiveram.

Continua após a publicidade

É possível dizer que o fim do trabalho doméstico é a maior mudança que ocorreu no mercado de trabalho nos últimos anos?

As mudanças foram mais conceituais. No final dos anos 70, havia muito desemprego no país, mas os trabalhadores começaram a perceber que, ao se unirem, as coisas poderiam ser diferentes. A primeira grande mudança veio aí, com o nascimento do sindicalismo para representar as classes trabalhadoras. Depois, veio a maior escolaridade, que começou a melhorar na década de 1990, quando o então ministro da Educação, Paulo Renato, conseguiu com que 96% das pessoas em idade escolar entrassem na escola. Mas, ainda assim, não havia muitos empregos. Hoje, as empresas querem pessoas com mais tempo de escolaridade – e isso vem acontecendo, apesar de a educação ainda não ser boa. Outra grande mudança veio nos últimos 10 anos, quando as pessoas começaram a entender que deixar o filho na escola era investir no futuro dele e da família. No passado, as crianças começavam a trabalhar aos 12 anos porque precisavam ganhar dinheiro e não conseguiam estudar.

Nas grandes capitais, o salário de trabalhadores domésticos, em geral, é muito acima do salário mínimo – e acima até dos salários de outras profissões. O senhor acredita que, diante disso, o trabalho doméstico atraia imigrantes latino-americanos?

Não creio. Em outros países, esse tipo de imigração deu certo porque o imigrante era atraído não pelo trabalho, mas pela possibilidade de ganhar mais dinheiro do que podia fazer no país de origem. O Brasil pode importar mão de obra, mas quem quer vir pra cá? O que para nós é bom, parece que não é bom para todo mundo. A propaganda que ainda se faz é de morte e violência. A noção que as pessoas têm do país não é de um local tão promissor como os Estados Unidos ou a Europa. Muitos engenheiros vieram do exterior em busca de salários altos, porque há falta dessa mão de obra aqui. Mas esses salários não são os de uma doméstica. É preciso entender que a redução do número de empregadas vai ser o destino até mesmo do Haiti, quando o país tiver melhor distribuição de renda e for mais democrático.

A figura da doméstica no Brasil é muito emblemática- é um ícone nacional. Isso não acontece nos Estados Unidos, por exemplo. Até quando isso vai durar?

O Brasil caminha para o fim desse símbolo. Empregadas domésticas, só para quem tiver muito dinheiro para ter uma. O processo aqui já começou e vai ser mais acelerado, principalmente, em São Paulo, se compararmos com cidades de vida agrícola, por exemplo. Mas não me arrisco dizer quanto tempo vai levar. Mas é uma exigência civilizatória. E a vida sem doméstica será uma consequência.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.