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Keynes não defendia estado forte, destaca pesquisador

Essa é a ideia apresentada pelo economista José Roberto Afonso em livro lançado neste mês. Pensamento keynesiano foi mal interpretado, diz autor

Por Talita Fernandes
30 set 2012, 09h18

Para o autor de Keynes, Crise e Política Fiscal, o teórico britânico não defendia o intervencionismo estatal na economia, mas sim um papel de indutor do crescimento em momentos de crise

A crise financeira que estourou nos Estados Unidos em setembro de 2008 e as atuais turbulências por que passa a Europa – que implicaram trilhões de dólares despejados pelo poder público no salvamento de bancos, seguradoras e, no caso europeu, países – reacenderam as discussões sobre o papel do estado na economia. O debate está mais vivo que nunca. Na semana passada, milhares de pessoas foram às ruas de cidades espanholas e gregas para pedir por “mais governo”. Dizeres em cartazes e hinos cantados pela multidão criticaram cortes no orçamento e a redução de subvenções estatais. Como pano de fundo, acadêmicos e alguns líderes políticos têm feito coro à população e clamam por mais John Maynard Keynes (veja quadro com um perfil dele) na condução da economia – em referência ao brilhante pensador que um dia ousou atribuir ao estado um papel fundamental em momentos de crise. A lembrança é pertinente – mas infelizmente a maneira como Keynes é invocado distorce muitas de suas principais ideias.

Em 1936, Keynes escreveu uma de suas obras mais conhecidas, a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Em vez de repetir o mantra de que o estado não deveria interferir na atividade em hipótese alguma, o economista britânico afirmou que naqueles momentos em que a economia está à beira de um colapso deveriam contribuir como indutores do investimento.

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Mais que um economista

O inglês John Maynard Keynes (1883-1946) não era um economista típico. Casado com a bailarina Lydia Lopokova (mas também avidamente interessado em rapazes), ele passou a vida entre as figuras mais notáveis da belle époque londrina. Fez seus principais amigos no grupo de Bloomsbury, que reunia intelectuais como Virginia Woolf, autora de romances que marcaram época, como Orlando, ou o filósofo Bertrand Russell, que disse a seu respeito: “O intelecto de Keynes foi o mais brilhante e o mais claro que já conheci”.

Keynes formou-se em Cambridge e até a eclosão da I Guerra se dedicou sobretudo à carreira acadêmica. Em 1915, porém, tornou-se funcionário do Tesouro britânico e mostrou ser um exímio formulador e implementador de políticas econômicas. Ao fim da guerra, ele foi enviado a Paris para trabalhar na conferência que selava a paz na Europa. A experiência foi frustrante. Keynes se demitiu e escreveu seu livro mais famoso, As Consequências Econômicas da Paz, no qual previu que as indenizações impostas à Alemanha derrotada sufocariam o país e o levariam a buscar uma guerra de vingança no futuro. Seu livro foi um best-seller mundial. Pode-se dizer que tirou a economia do círculo dos iniciados fazendo dela, pela primeira vez, um tópico de interesse para o público geral. Trinta anos mais tarde, Keynes teria um papel destacado na definição da ordem econômica no pós II Guerra Mundial.

Keynes tinha outra faceta notável: fez fortuna como investidor e especulador. Segundo seu principal biógrafo, o também inglês Robert Skidelsky, ele foi “uma espécie de Warren Buffett ou George Soros dos dias de hoje”.

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O próprio Keynes costumava dizer que a experiência em mundos tão diversos foi responsável por “fertilizar” seu pensamento econômico. Ele acreditava que a riqueza não era um fim em si, mas um meio para levar ao bem-estar – a uma vida de “tranquilidade física, conforto material e liberdade intelectual”. Rejeitava enfaticamente o socialismo (e a ênfase dos socialistas na revolução). Por esse motivo, concentrou suas energias na busca de ferramentas que propiciassem uma espécie de estabilização do capitalismo – no sentido de manter as engrenagens da produção de riqueza em movimento perene. O que Keynes mais temia eram forças internas do capitalismo que a longo prazo, acreditava ele, tendiam a levar o sistema à estagnação.

O economista morreu em 1946, em decorrência de um ataque cardíaco. Foi homenageado com pompa, numa grande cerimônia na Abadia de Westminster.

A retomada das discussões sobre a teoria de Keynes motivou o economista paulista José Roberto Afonso – funcionário de carreira do BNDES que está hoje cedido ao Senado – a escrever o livro Keynes, Crise e Política Fiscal (Ed. Saraiva, 120 páginas), lançado neste mês. Na obra, ele retoma os princípios da escola keynesiana e aponta o quanto ela foi vítima de interpretações e leituras errôneas. O maior erro, segundo Afonso, é atribuir a Keynes o posto de grande defensor do intervencionismo estatal e dos gastos públicos. Confira entrevista do autor ao site de VEJA.

Por que um livro sobre Keynes?

Em 2008, estourou a bolha imobiliária do mercado americano, com repercussões em todo o mundo, e uma resposta dos estados foi necessária para impedir um colapso global. Nesse ambiente, Keynes emergiu da condição em que estava – de um maldito ou um esquisito – para ocupar posição central nas discussões sobre soluções para a crise. Só se falava nele. Alguns autores respeitados e conhecidos publicaram livros para destacar seu retorno. O que essas obras fizeram foi muito diferente do que faço. O objetivo delas era trazer Keynes para o século XXI, chamando-o a oferecer respostas a dilemas contemporâneos. Era como se lhe perguntassem, por exemplo, “Keynes, como o senhor avalia o mercado de dívida subprime dos EUA?” Mas na década de 1930, época em que ele escreveu suas principais obras não havia subprime! Na verdade, o sistema financeiro não existia tal como existe hoje. Keynes não tem nada a dizer sobre derivativos, pelo simples fato de que eles ainda não haviam sido criados. Por isso, minha proposta foi diferente. Em vez de tentar trazer Keynes à atualidade, decidi voltar ao contexto em que ele estava. Por isso digo que esse livro é menos de teoria e mais de história: um resgate do pensamento do economista Keynes sobre política fiscal e outras questões.

Essa minha escolha exigiu um trabalho muito grande. O principal livro do Keynes, chamado Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de 1936, possui cerca de 350 páginas na versão brasileira e apenas seis citações sobre política fiscal, por exemplo. Ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, esta que foi sua principal obra não se dedicou à política fiscal. Não era o tema central do livro, nem o secundário. O pensamento mais relevante sobre esta questão, a meu ver, só vai aparecer em um período posterior, principalmente na época da II Guerra Mundial. Depois de escrever a Teoria Geral é que Keynes começa a fazer reflexões sobre se o estado precisa ou não gastar mais, e em que condições. Isso foi feito em vários trabalhos dele, artigos, palestras, mas não há um livro específico sobre isso.

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Biblioteca

Keynes, Crise e Política Fiscal

Livro 'Keynes, crise e política social, do autor José Roberto Rodrigues Afonso
Livro ‘Keynes, crise e política social, do autor José Roberto Rodrigues Afonso (VEJA)

Autor: JOSÉ ROBERTO AFONSO

Editora: SARAIVA

120 PÁGINAS

42 reais

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Se a política fiscal nunca foi o ponto mais destacado da teoria de Keynes, como explicar que esse seja o aspecto de sua obra cravado no imaginário das pessoas?

Keynes é sempre lembrado porque ousou atribuir um papel relevante aos governos numa época em que poucos falavam disso. Até então predominava a chamada “economia clássica” em torno da qual orbitavam conceitos como a “mão invisível do mercado” – que diz que o estado deve ser pequeno e não deve atrapalhar, muito menos se meter nos negócios privados. Keynes não era um revolucionário como Karl Marx. Ao contrário. Acreditava que o estado teria de entrar em ação em certos momentos justamente para salvar o capitalismo. O estado precisa usar seus instrumentos para impedir que uma economia entre em colapso, por exemplo, num momento de crise global.

Alguns países emergentes se têm valido do estado para a aceleração suas economias. Esta não seria o tipo de ação que se pode chamar de keynesiana?

Sim. Minha conclusão sobre a teoria de Keynes é que existe uma distinção clara entre crise e ciclo. A economia sempre se move em ciclos: ora está crescendo, ora decrescendo. A desaceleração da taxa de expansão do Produto Interno Bruto (PIB) de um país – como está acontecendo já há algum tempo no Brasil – é um evento pertencente a um ciclo. Algo muito diferente é o que se viu em 2008, por exemplo. Naquele instante, a economia mundial sofreu um ataque cardíaco e estava prestes a morrer. Isso é crise: um momento em que se olha para frente e não se sabe o que vai acontecer. A incerteza é tão grande que as empresas param de investir e reduzem a produção. Isso provoca desemprego e logo estamos diante de uma bola de neve. Um empresário começa a demitir e quem é mandado embora passa a comprar menos. É neste momento que o governo tem de entrar comprando e investindo, como, de fato, ocorreu em diversos países em 2008 e 2009. Funciona como uma operação cirúrgica de salvamento. Ao destacar a defesa do estado como socorrista, Keynes inovou naquele tempo e seus ensinamentos passaram a ser muito debatidos. Já o ciclo faz parte da normalidade da economia. Uma hora você olha para frente e acha que vai crescer mais; em outra, espera crescer menos. É diferente da crise, que é uma incerteza radical.

Um ciclo de desaceleração econômica não requer, então, intervenção ostensiva do estado, segundo Keynes?

Exatamente. As pessoas se esquecem que Keynes também deixou claro que não se tem um problema cardíaco todo dia. Ele defendeu que, entrando no jogo para impedir uma crise sistêmica, o estado tinha de sair quando a economia voltasse a crescer. Prosseguindo com a minha analogia, o remédio para uma crise coronária não é o mesmo para quem só tem colesterol alto. Os que se dizem keynesianos, salvo os mais ortodoxos, afirmam que ele quer um estado forte o tempo todo. Não é nada disso.

O Brasil está hoje em um ciclo de baixo crescimento ou em crise?

Eu diria que o Brasil está em um ciclo de desaceleração, mas uma parte do mundo – principalmente a europeia – está em crise mesmo. São duas situações diferentes. As empresas brasileiras não estão na mesma incerteza que as da Grécia. Em uma hora de muitas incertezas, o estado pode se fazer presente, mas com investimentos, e não pelo gasto público excessivo em custeio e benefícios. Aliás, quando se olha para um governo que gasta muito como o brasileiro – desde a folha salarial dos servidores até as aposentadorias – à luz da teoria de Keynes, a conclusão é que essa característica funciona como um colchão num cenário de crise. Quando você dá um soco num colchão, o impacto é amortecido. Gastar muito, como faz o Brasil, pode ser providencial quando uma nação precisa de um anteparo contra golpes externos. Contudo, na maior parte do tempo, um país precisa funcionar como uma locomotiva. Nessa situação é preciso investimento das empresas, ao passo que o estado funciona como um freio. E isso está bem claro em Keynes.

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Quem pede mais investimento, verbas e subvenções do estado frequentemente invoca Keynes para se justificar. O que ele diz especificamente sobre gastos públicos?

Investimento público é algo que se pode fazer hoje e deixar de fazer amanhã. Não é preciso ter o tempo todo. Não precisa ficar construindo portos, aeroportos, pontes e metrô para sempre. Tem de fazer e depois operar. Gosto de destacar que Keynes era economista, mas tinha visão de engenheiro. Ele usa a lógica de que investimento vira capital e gasto corrente vira consumo. Quando se está construindo um porto, por exemplo, há gasto corrente com pessoal, máquinario e obras. Isso aquece a economia. Mas, no final, fica também uma estrutura que vai permitir ao país produzir e exportar mais. É capital que fica para o futuro. No Brasil, uma dificuldade que já tínhamos, e que se agrava nessa fase de desaceleração, é que a taxa de investimento doméstica é muito baixa – e menor ainda no setor público. O que moveu nossa economia por muito tempo foi o consumo, mas existe um limite para que as famílias fiquem comprando. E o governo continua se endividando.

No caso da Europa, que está passando por uma pressão muito grande para corte de gastos, como os estados conseguirão reanimar a economia?

Não é fácil encontrar o equilíbrio entre estimular – que é o estado entrar na economia – e evitar correr riscos. Keynes deixou bem claro que o setor público tem de entrar e sair. Na Alemanha, por exemplo, que hoje prega austeridade a seus pares europeus, foi feito um esforço fiscal monumental para a integração do país nos anos que se seguiram ao colapso do comunismo. Isso teve um impacto importante nas contas públicas alemãs pós-reunificação – o país, inclusive, chegou a usar o lucro do banco central da Alemanha Ocidental para financiar a reconstrução da parte oriental. A Alemanha aumentou sua presença na economia e cresceu. Depois veio o euro e essa política foi revertida. A moeda única foi fundamental para modernizar e aumentar a presença da indústria alemã na Europa. Com esse crescimento, ela pôde controlar seu endividamento. Ela soube se endividar para reconstruir e integrar, da mesma forma que soube depois reduzir seu endividamento. Hoje ela está cobrando isso de todos. O grande temor, a meu ver, é que os outros países europeus podem estar hoje em um momento que a Alemanha esteve duas décadas atrás.

O senhor fala no livro sobre a linguagem complexa usada por Keynes. Iisso dificultou o entendimento dos leitores e ajuda a explicar toda a confusão que se faz até hoje com as ideias dele?

A Teoria Geral foi escrita numa linguagem muito densa. Keynes se havia formado naquela escola clássica de pensamento econômico com a qual ele acabou por romper. Mesmo nos momentos em que buscou usar termos mais coloquiais, Keynes foi mal-interpretado. Na passagem em que diz que, na falta de algo melhor, o estado deveria contratar pessoas para fazer buracos e outras para tapá-los, ele usou uma força de expressão para destacar o quão crítica era a situação econômica na década de 1930. Queria simplesmente conclamar os governos a fazer alguma coisa útil. As pessoas, no entanto, entenderam que Keynes estava mandando gastar dinheiro a rodo. Em economias emergentes como a nossa, entretanto, há muito para ser feito. Falta infraestrutura logística, tecnológica e social. Há escolas, hospitais e segurança insuficientes e com baixa qualidade. Em um extremo, é uma falta de investimento na estrutura física e econômica do país. Aeroportos depredados, estradas ou aeroportos faltando. Em resumo, existe muita coisa melhor para se fazer do que ficar abrindo e tapando buracos.

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