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‘A reversão dos ganhos sociais é possibilidade real’

Economista acredita que os ganhos salariais provenientes do setor de serviços podem ser revertidos com a desaceleração econômica — e a queda do emprego nesse segmento tem o potencial de minar os avanços sociais

Por Ana Clara Costa
1 mar 2015, 17h09

Os ganhos sociais têm sido o grande trunfo do Brasil, nos últimos anos, para explicar a redução da desigualdade. Programas de transferência de renda criados pelos governos petistas, como o Bolsa Família, funcionaram como indutores da inclusão e colocaram o Brasil no rol dos poucos países que conseguiram reduzir o abismo entre pobres e ricos nos últimos dez anos. Mas essa retórica pode estar por um fio se o emprego, em especial no setor de serviços, começar a ceder. É isso que acredita o economista Sergio Firpo, Ph.D. em Economia pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, e professor de Econometria da Fundação Getulio Vargas. Na avaliação de Firpo, os ganhos sociais estão muito mais associados à entrada de dólares vindos do boom das commodities, que acabaram turbinando a economia brasileira e o mercado de trabalho, do que a uma mudança consistente de patamar de renda da população decorrente de políticas públicas.

O economista acredita que os programas de transferência, como o Bolsa Família, foram eficazes para reduzir a pobreza. Mas que dificilmente alguma política foi mais poderosa do que a China na tarefa de ajudar a reduzir a desigualdade no Brasil. “A China funcionou como uma espécie de anabolizante. Agora que a dose está sendo reduzida, é possível ver um pouco melhor a realidade. Sempre estaremos mais ou menos inseridos no mercado mundial, mas sem a China, temos uma percepção mais fiel dos avanços que geraram, de fato, ganhos sociais”, afirma. Leia trechos da conversa.

Por que o retorno salarial sobre a escolaridade só cai?

Uma das razões é estrutural e tem a ver com a maior oferta de pessoas com mais escolaridade no Brasil. Há mais pessoas que cursaram Ensino Médio e a universidade do que 30 anos atrás. E esse aumento de oferta impacta diretamente os retornos salariais da escolaridade. Antes, o diferencial do curso superior nos ganhos salariais era maior porque menos gente tinha diploma. Ao passo que mais pessoas entram no mercado de trabalho com um nível maior de instrução, é natural que o mercado não consiga absorver todos com um salário que remunere a escolaridade, em especial o Ensino Superior. E, no Brasil, o acesso à educação melhorou muito desde o início da década de 1990, com os investimentos dos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Então é um movimento natural que esse diferencial ceda.

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Mas a renda do brasileiro vem aumentando.

Aí temos outra variável que não é necessariamente a questão da educação. O país passou pelo boom nos preços das commodities em meados de 2000, o que afetou setores inteiros que vão além do agronegócio. O setor de serviços foi altamente influenciado pelo dinheiro das exportações. E quando você passa a exportar mais, mais dólares entram no país e é preciso gastá-los ou com importações ou com consumo de bens e serviços, como cabeleireiros e restaurantes, por exemplo. Com isso, muitas pessoas que trabalhavam neste setor, e que tinham baixa escolaridade, passaram a ganhar muito mais. Esse, inclusive, é outro fator que influencia o baixo retorno salarial sobre a escolaridade. Pois, na outra ponta, há salários altos sendo pagos a pessoas que não têm, necessariamente, uma formação.

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Há estudos que mostram o impacto real da educação nos salários?

Não no Brasil. Mas muitos países nórdicos, como a Suécia, cujo sistema educacional é de ponta, conseguem mensurar esses ganhos. Um vizinho mais próximo, o Chile, também consegue, pois suas bases de dados tributários e educacionais são integradas. Lá é possível comparar os ganhos dos que foram à universidade pública e à privada. Curiosamente, no Chile, há uma parcela relevante da população que fica com essa conta negativa: ou seja, o retorno sobre a educação não chega no nível do que foi investido. No Brasil, não temos acesso a esses dados de forma tão ampla. Mas, diante do avanço estrondoso do Fies, a suspeita é de que boa parte das pessoas também não encontre o benefício monetário do valor investido.

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Então o aumento da renda, no Brasil, está mais relacionado às commodities do que à educação?

Indiretamente, sim. Inclusive, quando se trata da redução da desigualdade. Mais da metade da redução da desigualdade de renda se deve ao que aconteceu no mercado de trabalho, e não às políticas de transferência de renda, por exemplo. Essas políticas foram importantes para reduzir a miséria, mas só o emprego foi capaz de reduzir a desigualdade. Não à toa, os índices de desigualdade de renda familiar per capita e desigualdade salarial caminham juntos. É mais uma evidência de que o mercado de trabalho é o motor para explicar a queda. E se o mercado de trabalho é frágil, os avanços trazidos por ele também são.

O desaquecimento do emprego, em especial no setor de serviços, pode trazer a reversão dos ganhos sociais?

O desemprego, seja onde for, tem impacto social. E ainda não está claro se os ganhos sociais que o Brasil teve são irreversíveis. O exemplo de nossos vizinhos está aí para provar isso. A Argentina está em recessão, com desemprego e desigualdade crescendo. O fato é que, se não fizermos as reformas necessárias no país, podemos ampliar de forma importante a desigualdade. Não digo que ela volte ao que era na década de 1980, mas a redução já está estagnada há um tempo e tende a crescer. Como o setor de serviços foi muito impactado pelo boom das commodities, com cenário de recessão, esse setor pode ser o mais afetado e há um risco real de que ele impulsione, sozinho, um aumento na desigualdade e a reversão dos ganhos sociais.

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A China, como grande importadora das commodities brasileiras, pode ter sido mais importante para a redução da desigualdade no Brasil do que as políticas públicas?

Não há nenhum estudo que comprove isso empiricamente, mas a China é certamente um dos maiores suspeitos. E os políticos de plantão se beneficiaram do cenário para dizer que tudo foi obra deles. A China funcionou como uma espécie de anabolizante. Agora que a dose está sendo reduzida, é possível ver um pouco melhor a realidade. Sempre estaremos mais ou menos inseridos no mercado mundial, mas sem a China, temos uma percepção mais fiel dos avanços que geraram, de fato, ganhos sociais.

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Qual é o impacto do salário mínimo na redução da desigualdade?

É um impacto que oscila, pois depende de várias circunstâncias favoráveis para ter esse papel de redutor. O aumento do mínimo numa situação de recessão pode não ter muita potência. E talvez tenha o efeito inverso. Quando se aumenta demais o mínimo em períodos de crise, pode haver o efeito de deslocamento em que as pessoas são jogadas para fora do mercado formal ou para o desemprego. Ou seja, muitos passam a ganhar menos, sem aproveitar os benefícios dos reajustes reais. Se a economia está aquecida, todos sobem juntos: o empregador, o assalariado, a renda. Nesse contexto, se o mínimo tem mais reajuste que o topo da pirâmide, a desigualdade cede.

É possível constatar, então, que os amplos investimentos em educação feitos pelo governo não são tão eficazes em trazer mais ganhos ao trabalhador?

A educação sempre traz ganhos. Não se pode dizer que os investimentos foram irrelevantes. O Fies, por exemplo, é um programa bilionário que permitiu que muitos jovens que, antes, sequer pensavam em estudar, tivessem hoje um diploma. Mas esses investimentos melhoraram, sobretudo, o acesso à educação. Não a qualidade. O ideal é que os investimentos feitos a partir de agora mirem a melhora da qualidade num horizonte de 20 a 30 anos, senão o Brasil sempre vai ficar à mercê de solavancos externos, dependendo de atores como a China para para vencer seus problemas internos. Para alcançarmos isso, é preciso comprometimento dos governos, mas também da sociedade. É preciso que haja uma conscientização em relação à melhora da educação da mesma forma que está havendo, hoje, sobre a questão da água.

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