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Por que Jeffrey Sachs é importante

O fundador da Microsoft mostra como o parcial insucesso do projeto social do economista em aldeias africanas não é uma barreira para investir na pobreza, correr riscos e colocar a teoria em prática

Por Bill Gates*
22 Maio 2014, 15h43

O cantor Bono Vox chama o economista Jeffrey Sachs de “um gatinho com a força de um leão”. Para mim, Sachs é o Bono da economia – um cara com inteligência, paixão e poderes de persuasão impressionantes e que dedica os seus talentos para dar voz às pessoas mais pobres do planeta. Portanto, não fiquei surpreso com o fato de uma jornalista achar que Sachs seria um protagonista convincente para um livro – e uma forma apropriada de atrair leitores para um assunto potencialmente cáustico do desenvolvimento internacional.

No livro O Idealista, a editora da Vanity Fair Nina Munk desenha um retrato diferenciado de Sachs e do seu Projeto Aldeias do Milênio (MVP, na sigla em inglês), um projeto-piloto de 120 milhões de dólares destinados a mostrar ao mundo que é possível tirar aldeias africanas da pobreza através de uma infusão maciça de assistência específica. Teria sido fácil, e talvez mais comercial, se Munk desenhasse uma caricatura, acentuando excessivamente as qualidades negativas de Sachs, em detrimento dos seus grandes talentos. Mas ela não o fez.

Nina passou seis anos pesquisando para o livro, e para conhecer mais sobre o economista Sachs viveu durante longos períodos em duas das 15 Aldeias do Milênio. Ela aprecia claramente a importância e a dificuldade daquilo que Sachs e a sua equipe estão tentando fazer.

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Ao contrário da maioria dos livros que falam sobre o desenvolvimento internacional, o livro de Nina é de leitura bastante agradável e não é muito extenso (260 páginas). Eu disse a todos na nossa fundação que acho que vale a pena arranjar tempo para lê-lo. É uma história exemplar valiosa e, às vezes, devastadora. Embora algumas das Aldeias do Milênio tenham conseguido ajudar famílias a melhorarem a sua saúde e os seus rendimentos, as duas aldeias onde Nina passou mais tempo estudando – Dertu, no Quênia, e Ruhiira, na Uganda – não estiveram perto de realizar a visão de Sachs.

Quando Sachs começou o planejamento do projeto, veio até a fundação para pedir apoio. Nós já éramos um grande defensor de seus esforços no Instituto da Terra da Universidade Columbia e sentimos que seria de valor inestimável trabalhar com ele nas necessidades dos países pobres.

Seus argumentos em prol do projeto inspiravam curiosidade. Ele pegava um punhado de aldeias para focar nelas intervenções intensas na área de saúde, educação e agricultura – todas de uma vez. A sua hipótese era que essas intervenções seriam tão sinérgicas que iriam iniciar um ciclo virtuoso ascendente e tirar as aldeias da pobreza para sempre. Ele achava que se concentrássemos a atenção apenas nos fertilizadores sem abordarmos também a saúde, ou se simplesmente fornecêssemos vacinas sem fazer nada para ajudar a melhorar a educação, o progresso não vingaria sem uma fonte infinita de ajuda.

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Eu e os meus colegas tínhamos algumas reservas em relação à abordagem de Sachs. Questionamos a sua base e suposições sobre a rapidez com que os ganhos se materializariam, o que poderia ocorrer quando o financiamento do MVP terminasse, com quanto os governos contribuiriam para compensar os custos elevados por pessoa e quão viável seria medir o progresso (tendo em conta a probabilidade de que as pessoas das áreas circundantes iriam deslocar-se em grande número para as suas aldeias a partir do momento em que os auxílios MVP começassem a fluir). Por isso, decidimos não investir no MVP diretamente, embora estivéssemos felizes por continuarmos a apoiar outros trabalhos de Jeffrey Sachs.

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Agora que o projeto não ocorreu como previsto, não vou começar a atirar pedras. Muitos de nossos projetos ficaram aquém das expectativas. É difícil apresentar soluções eficazes, mesmo quando se antecipe todas as contingências possíveis e as consequências inesperadas. Há uma tendência natural em quase todo o tipo de investimentos – empresarial, filantrópico ou de outra natureza – arriscar tudo diante de dificuldades e fracassos. Já fiz isso e acho que a maioria das pessoas também.

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Então, o que é que deu errado? Por um lado, as aldeias que Sachs escolheu experimentaram todos os tipos de problemas – da seca à agitação política. Por outro lado, o MVP seguiu uma abordagem idealista “Campo de Sonhos”. Os líderes do MVP incentivaram os agricultores a mudarem para uma série de novas culturas que tinham demanda nos países mais ricos e especialistas no terreno fizeram um bom trabalho quando ajudaram os agricultores a produzirem boas colheitas, utilizando fertilizantes, irrigação e sementes melhores.

Mas o MVP não investiu simultaneamente nos mercados em desenvolvimento para essas colheitas. De acordo com Munk, “depois de tudo, o abacaxi não podia ser exportado porque o custo do transporte era muito elevado. Aparentemente, não havia mercado para o gengibre. E, apesar de algum interesse inicial por parte dos compradores no Japão, ninguém queria farinha de banana”. Os agricultores aumentaram as colheitas, mas os compradores não apareceram.

É claro que Sachs sabe que é fundamental compreender a dinâmica do mercado; ele é um dos economistas mais inteligentes do mundo. Mas nas aldeias que Nina compareceu, Sachs parecia estar usando vendas.

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Warren Buffett gosta de dizer: “O espelho retrovisor é sempre mais claro do que os para-brisas”. Através desse espelho retrovisor, podemos ver que o projeto nunca teve um modelo econômico que pudesse sustentar os sucessos, uma vez que os dólares do MVP acabassem.

Todas as intervenções envolvidas – saúde, agricultura, infraestruturas, educação e capital inicial para os negócios – fazem sentido se levados com cuidado, ao longo do tempo. Mas estou surpreso com o fato de Sachs ter estudado muitíssimo pouco os orçamentos dos países e de não ter trabalhado para convencer os governos a se comprometer com uma tributação adicional para financiar mais destas intervenções internamente.

Através do espelho retrovisor, também podemos ver que muitas das ideias de Sachs provaram estar rigorosamente corretas. Nina escreve detalhadamente a luta de Sachs em 2007, com os doadores internacionais que recusaram distribuir gratuitamente mosquiteiros tratados com inseticida, por preferirem uma abordagem baseada no mercado no qual as pessoas pagariam uma pequena quantia por cada rede. Resumindo, Sachs não fez amigos durante o processo de promover a sua causa dos mosquiteiros gratuitos.

Através de discursos cada vez mais implacáveis, ele acabou por afastar potenciais aliados que querem derrotar a malária tanto quanto ele. Mas a história irá mostrar que Sachs estava absolutamente certo. Vimos que, desde então, o modelo gratuito permitiu uma distribuição muito mais ampla de mosquiteiros – e reduções muito maiores de casos de malária – do que os modelos de mercado.

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No final, espero que as pessoas que lutam contra a pobreza não deixem que a experiência do MVP os impeça de investir e correr riscos. No mundo do capital de risco, uma taxa de sucesso de 30% é considerada um histórico notável. No mundo do desenvolvimento internacional, os críticos expõem cada fracasso como prova de que ajudar é como jogar dinheiro fora sem possibilidades de retorno. Quando alguém tenta fazer algo tão difícil como combater a pobreza e doenças, esse alguém nunca irá conseguir nada de significativo se tiver medo de falhar.

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Admiro muito o Sachs por colocar as suas ideias e reputação em risco. Afinal, ele poderia ter uma boa vida sem fazer nada além do que ensinar duas turmas por semestre ou sendo conselheiro em revistas acadêmicas. Mas esse não é o seu estilo. Ele arregaça as mangas. Ele coloca as suas teorias em ação. Ele exige tanto de si como ninguém.

Eu acho que Sachs, tal como todos os pensadores e empreendedores implacáveis, aprenderá com os seus erros e voltar com ideias e abordagens mais sólidas. Sachs será sempre “um gatinho com a força de um leão” – e o mundo será um lugar melhor por causa disso.

*Bill Gates é co-presidente da Bill & Melinda Gates Foundation

© Project Syndicate, 2014

(Tradução: Roseli Honório)

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