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A história secreta da crise financeira

Historiador econômico Harold James questiona o papel do Fed como banco central global ao mesmo tempo em que pauta suas decisões com base nas perspectivas americanas

Por Harold James
13 mar 2014, 07h30

O maior romance de Balzac, Ilusões Perdidas, termina com uma exposição da diferença entre a “história oficial”, repleta de mentiras, e a “história secreta” – ou seja, a verdadeira. Antes, era comum ocultar verdades escandalosas da história por um bom tempo – até mesmo para sempre. Já não é mais.

E não há um lugar onde isso seja mais evidente que nos relatos da crise financeira global. A história oficial retratou o Federal Reserve (BC americano), o Banco Central Europeu (BCE) e outros grandes bancos centrais como comandantes de uma ação coordenada para resgatar o sistema financeiro global do desastre. No entanto, a publicação de transcrições das reuniões do Comitê Federal do Mercado Aberto (Fomc), datadas de 2008, revelam que, na verdade, a instituição saiu da crise com o papel de ser o banco central do mundo, enquanto continuava a apoiar principalmente aos interesses norte-americanos.

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As reuniões mais significativas ocorreram em 16 de setembro e 28 de outubro daquele ano – no rescaldo do colapso do banco de investimento Lehman Brothers – e direcionaram seu foco para a criação de acordos bilaterais de swap cambial, destinados a assegurar liquidez ao mercado.

O Fed iria estender suas linhas de crédito em dólar para um banco estrangeiro em troca de sua moeda – e o banco estrangeiro concordava em comprar sua moeda de volta após um período determinado, diante da mesma taxa de câmbio, somados os juros. Isso deu aos bancos centrais – especialmente àqueles na Europa, onde havia escassez do dólar – as divisas que precisavam para emprestar às instituições financeiras de seus países.

Com efeito, o BCE estava entre os primeiros bancos a chegar a um acordo com o Fed, seguido de outros grandes bancos centrais de países avançados, incluindo o Swiss National Bank, banco central do Japão e o do Canadá. Na reunião de outubro, quatro economias emergentes “diplomática e economicamente” importantes – México, Brasil, Cingapura e Coreia do Sul – se somaram à ação com o Fed, concordando em estabelecer linhas de swap de 30 bilhões de dólares com cada um de seus bancos centrais.

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Embora o Fed agisse como uma espécie de banco central global, as suas decisões foram moldadas, sobretudo, pelos interesses dos EUA. Para começar, o Fed rejeitou pedidos de alguns países – cujos nomes aparecem na transcrição publicada – para juntar-se ao esquema de acordos de swap.

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Mais importante ainda, foram fixados limites sobre esses acordos de swap. A essência da função de credor de última instância (no caso, os BCs) tem tradicionalmente sido a provisão de fundos ilimitados. Como não há limite na quantidade de dólares que o Fed pode criar, nenhum participante do mercado pode assumir uma posição especulativa contra ele. Por outro lado, o Fundo Monetário Internacional (FMI) tem recursos finitos, fornecidos pelos países membros.

O papel internacional do Fed desde 2008 reflete um giro fundamental na governança global monetária. O FMI surgiu num momento em que os países foram vitimados permanentemente por apostas casuais dos banqueiros de Nova York, tais como a avaliação do J.P. Morgan na década de 1920 de que os alemães eram “essencialmente um povo de segunda classe.” O FMI foi um recurso crítico da ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial, destinado a servir como um mecanismo de seguro universal – que não pudesse ser aproveitado para promover interesses diplomáticos contemporâneos.

Hoje, como os documentos do Fed demonstram claramente, o FMI tornou-se marginalizado – em particular, devido ao seu processo de política ineficaz. De fato, desde o início da crise, o FMI, supondo que a demanda por recursos permaneceria baixa, já tinha começado a reduzir sua capacidade de financiamento.

Em 2010, o FMI planejou ressurgir, apresentando-se como o ponto central na resolução da crise do euro – começando por seu papel no financiamento do resgate grego. No entanto, aqui também, revelou-se uma história secreta – que destaca a enviesada governança monetária global.

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O fato é que exclusivamente os Estados Unidos e os países massivamente representados da União Europeia apoiaram o resgate grego. Com efeito, as principais economias emergentes se opuseram veementemente. O representante brasileiro chegou a chama-lo de “um resgate de detentores de dívida privada da Grécia, principalmente instituições financeiras europeias.” Até o representante suíço condenou a medida.

Agora que os temores de um repentino colapso da zona euro deram lugar a um debate prolongado sobre como os custos serão recebidos através de resgates internos (os chamados bail-ins) e cancelamentos (write-offs), a postura do FMI se tornará cada vez mais complicada. Ainda que se suponha que o FMI tenha mais hierarquia que outros credores, haverá demandas de cancelamento de uma parte dos empréstimos emitidos. Os países mais pobres do grupo dos emergentes resistiriam a tal movimento, argumentando que seus cidadãos não têm de pagar a fatura por descontrole fiscal em países muito mais ricos.

Até os defensores originais do envolvimento do FMI começaram a se pronunciar contra o Fundo. Representantes da UE estão indignados pelo esforço aparente do FMI em obter apoio nos países devedores da Europa, estimulando cancelamentos de toda a dívida não emitida pelo fundo. E o Congresso dos EUA se recusou a apoiar a expansão dos recursos do FMI.

Enquanto a nomeação ultrajante de outro Europeu como diretor-geral do FMI, em 2011, provavelmente garanta que o próximo líder do Fundo não seja nativo da Europa, o papel cada vez menos transcendente do FMI dá a entender que isso não importa muito. Como mostra a história secreta de 2008, o que importa é quem tem acesso ao Fed.

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(Tradução: Roseli Honório)

Harold James é professor de História na Universidade de Princeton e pesquisador sênior do Centro para Inovação em Governança Internacional

© Project Syndicate, 2014

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