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‘Uso de animais em experimentos não é opcional’, diz pesquisadora

Na última semana, diversas vozes se levantaram para atacar o uso de bichos como cobaias em experimentos científicos. As críticas, no entanto, não levam em conta um fato irrefutável: não existe, por enquanto, nenhum substituto para o uso dos modelos animais

Por Guilherme Rosa e Juliana Santos
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h16 - Publicado em 28 out 2013, 06h47

Desde a invasão ao Instituto Royal, em São Roque (SP), na semana retrasada, um velho debate voltou à tona no Brasil. Ativistas, personalidades da TV e parlamentares se juntaram a uma turba de vozes das redes sociais para pedir um fim às pesquisas científicas que se utilizam de cobaias animais. Os testes foram tachados de cruéis, desnecessários e antiquados. Pesquisadores brasileiros passaram a ser vistos como monstros sádicos que utilizam procedimentos abandonados no resto do mundo em troca do lucro fácil.

Faltava nessa discussão, no entanto, uma voz importante, os próprios cientistas. Ninguém melhor do que biólogos, geneticistas, veterinários e médicos para dizer se é possível eliminar as cobaias animais nos testes. Entre os pesquisadores, a opinião é unânime: os bichos são imprescindíveis para os experimentos. Por isso, são permitidos no mundo todo; e sem eles não há como desenvolver novos remédios e tratamentos – a ciência médica poderia decretar falência no país.

“O uso de animais em experimentos não é opcional. Existem situações em que eles simplesmente não podem ser substituídos”, diz Silvana Gorniak, pesquisadora da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP que realiza pesquisas com roedores para estudar o potencial terapêutico e tóxico de diversas substâncias naturais.

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Seu estudo atual é sobre a planta Solanum malacoxylon, conhecida popularmente como espichadeira. “Quando consumida naturalmente, ela é tóxica. Estamos estudando se o seu princípio ativo, usado em quantidades menores e controladas, pode funcionar como um substituto da vitamina D”, explica. Para descobrir se o potencial terapêutico da planta pode se reverter em tratamentos reais, é necessário realizar testes em modelos animais. Caso a substância seja testada diretamente em cobaias humanas, o risco para os voluntários é imenso.

Segundo a cientista, a decisão de usar bichos em suas pesquisas não é simples – nenhum pesquisador faz isso porque gosta. Ademais, esse tipo de estudo é muito caro, pois o custo das cobaias animais eleva em muito o preço dos experimentos. Por isso, há décadas, laboratórios de todo o mundo procuram por métodos alternativos. Nos últimos anos surgiram novas técnicas de cultura celular e modelos de computador, capazes de substituir os animais em algumas pesquisas, mas não todas. Não há como simular o funcionamento conjunto de sistemas complexos do corpo, como o circulatório, nervoso e imunológico. “Como replicar a depressão em uma cultura de células? Não existem métodos alternativos para testar anticancerígenos, vacinas contra aids, medicamentos anti-hipertensivos. Para saber se eles funcionam, precisamos testar em animais”, diz Silvana.

O que diz a lei

Desde 2008, o cientistas brasileiro que quer realizar pesquisas com cobaias animais tem de obedecer a uma série de regras. Nesse ano, a Lei Arouca estabeleceu a criação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Consea), órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia com o objetivo de decidir o que pode ser feito durante esse tipo de procedimento.

Todo biotério, local onde os animais são criados e armazenados antes de serem utilizados no experimento científico, tem de ser aprovado pelo conselho. Para conseguir o cadastro, uma instituição deve informar ao governo o que é feito com os animais, as condições em que são mantidos – temperatura, luminosidade, espaço – e quais profissionais são treinados para cuidar dos animais. “Nenhuma instituição pode fazer pesquisa sem estar credenciada”, diz Marcelo Morales, coordenador do Concea.

Além disso, cada biotério precisa ter uma Comissão de Ética para o Uso de Animais, que deve ter entre seus membros, obrigatoriamente, médicos veterinários, biólogos, membros da sociedade civil e de entedidades protetoras aos animais. Nenhuma pesquisa pode ser feita sem a aprovação da comissão, que vai analisá-la baseada nas regras nacionais e internacionais. (O Instituto Royal tinha uma Comissão de Ética, e todas as suas pesquisas foram aprovadas por todos os seus membros – inclusive os de sociedade protetoras dos animais).

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“Sem essa aprovação, a pesquisa não consegue financiamento das agências de fomento e nem consegue ser publicada em periódicos importantes”, afirma Mariz, que é presidente da Comissão de Ética no Uso de Animais do Instituto de Biociências da USP.

Entre as regras a serem seguidas, está a necessidade de evitar causar dor ou sofrimento a qualquer animal. Se um procedimento for gerar desconforto, o animal tem de estar anestesiado e permanecer sob efeito de analgésicos até que a dor passe. Caso o sofrimento não possa ser revertido, o bicho deve sofrer eutanásia, também realizada seguindo normas estritas.

A lei brasileira é muito semelhante à que existe na maior parte do mundo desenvolvido, com uma exceção. A União Europeia criou uma lei em 2009 que proíbe o teste de cosméticos em animais. O Concea admite discutir o tema no futuro.

Camundongos e cães – Ao contrário do que tem sido apregoado por ativistas nos últimos dias, o uso de modelos animais – mesmo pequenos roedores – é importantíssimo para o estudo de doenças em seres humanos. “O camundongo é pequeno, fácil de reproduzir, tem um curto ciclo de vida e regeneração rápida, o que o torna uma ótima cobaia. Seu genoma é muito parecido com o humano, o que ajuda a responder muitas perguntas, principalmente da área genética”, afirma a geneticista Mariz Vainzof, coordenadora do Laboratório de Proteínas Musculares e Histopatologia Comparada do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP.

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É claro que nenhuma cobaia é absolutamente fiel à fisiologia humana, mas cada linhagem de animal pode fornecer respostas para questões diferentes dos pesquisadores. Os roedores são um ótimo modelo para a pesquisa conduzida por Mariz, por exemplo, mas péssimos para a depressão. Nesse caso, os pesquisadores teriam de estudar algum outro animal. Poderia ser, inclusive, um cachorro.

Em algumas pesquisas, os cientistas precisam de mais de uma espécie – cada uma responderá a questões diferentes dos cientistas. A talidomida é um exemplo da importância desse tipo de procedimento. A droga chegou às farmácias no final da década de 1950, como uma espécie de sedativo. Anos mais tarde, descobriu-se que ela era responsável por produzir deformações em recém-nascidos, levando à morte de milhares de crianças. O problema foi que a droga só havia sido testada em ratos e camundongos – animais imunes a seus efeitos adversos. Os pesquisadores deveriam ter realizado experimentos também em outras espécies, capazes de emular outros sistemas do corpo humano. Atualmente, esse erro não se repetiria.

Cuidados com as cobaias – Durante uma pesquisa científica, os animais têm de receber todos os cuidados necessários. Cobaias que sofram maus tratos podem arruinar uma pesquisa, alterar seus resultados, impedir seu financiamento e barrar sua publicação em periódicos científicos. “Não sei de onde as pessoas tiram que os cientistas gostam de maltratar os bichinhos. A maioria de nós é formada em biologia. Estamos nessa área justamente porque gostamos da natureza”, afirma Mariz.

Para alguns dos pesquisadores, começar a realizar testes em animais é um choque. Mesmo com todos os cuidados, nem sempre é fácil seguir os procedimentos necessários. “Quando isso acontece com algum dos meus estudantes, eu o coloco em contato com algumas das crianças que estamos tentando tratar, com sua família. E mostro que esse é o nosso objetivo: estamos fazendo isso em prol de uma criança doente”, diz Mariz, cuja principal pesquisa busca a cura para a distrofia de Duchenne, uma doença degenerativa que atinge um entre cada 3 000 homens.

Paula Cristina Onofre Oliveira, aluna de doutorado de Mariz, é um exemplo desse tipo de pesquisador. Antes de se envolver com as pesquisas, ela havia ingressado em movimentos pela defesa dos direitos dos animais, participado de seminários e cursos que analisavam métodos substitutivos. Hoje, ela usa cobaias em seus estudos sobre a genética das doenças neuromusculares. “Não vou dizer que é fácil. Sempre tentamos minimizar o sofrimento e o número de animais, mas às vezes é impossível escapar desse tipo de experimento. Para conseguir fazer isso, temos de estar sempre pensando nos pacientes”, diz.

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Preconceito animal – Gilson Volpato especialista em bem-estar animal e professor do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu, realiza uma série de experimentos com peixes para provar que esses animais também são capazes de sofrer e sentir dor. “A pesquisa pretende mostrar que outros animais além dos cachorrinhos e gatinhos sofrem. Essa é uma crença humana: quanto mais próximo o animal do homem – e mais bonitinho ele for – mais acreditamos que ele é capaz de sofrer. Mas a ciência tem mostrado que isso não é verdade.”

Segundo Volpato, a decisão de utilizar animais em experimentos científicos só é justificada quando não existem alternativas e quando o objetivo é um bem maior. “A ciência é uma consequência direta da evolução humana. Uma ferramenta que surgiu para ajudar o homem na luta por sobrevivência na natureza. É aceitável o ser humano usar essa faculdade para resolver problemas de saúde e aumentar a longevidade”, afirma. “Nesse sentido, utilizar animais em pesquisas que podem curar doenças é um processo natural. Agora, causar sofrimento nos animais por motivos meramente lúdicos não é natural, é um absurdo.”

Os testes de cosméticos

Desde julho deste ano, a União Europeia proíbe a venda de produtos cosméticos testados em animais. O principal motivo alegado é o bem-estar dos bichos – mas as pesquisas com fins científicos e médicos continuam aprovadas. Outro fato que pode ter ajudado na proibição é a existência de diversas técnicas que substituem o uso de animais nesse tipo de experimentos, como peles artificiais.

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Antes mesmo dessa decisão, algumas empresas alardeavam que seus produtos não eram testados em animais, o que dificilmente pode ser verdade. “Falar que seu produto cosmético não foi testado em animal é uma espécie de enganação. Hoje, 99% dos produtos cosméticos finalizados – um xampu, por exemplo – não são testados em animais. Mas todos os seus componentes foram testados no passado, para descobrir se não eram tóxicos. Por sorte, essa prática está sendo abandonada com o avanço da tecnologia”, diz Silvana Gorniak, pesquisadora da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP.

No Brasil, esse tipo de experimentos não está proibido, apesar de ser cada vez mais incomum – tanto por causa do marketing das empresas quanto pelas novas técnicas disponíveis. Segundo Marcelo Morales, coordenador do Concea, a proibição dos testes de cosméticos em animais está sendo cogitada. Mas uma série de empecilhos técnicos e legais precisam ser superados antes disso.

“No Brasil, nós temos de importar kits para testar a irritabilidade da pele humana. O problema é que eles têm prazo de validade de sete dias, e muitas vezes já não funcionam quando chegam nos laboratório”, diz Morales. O CNPQ investiu dinheiro para que pesquisadores produzissem o kit no Brasil. Quando isso for possível, haverá outro problema: uma lei vigente que proíbe a comercialização de produtos derivados de seres humanos, de modo que esse kit não poderá ser vendido no país. “Uma das intenções do Concea é proibir o teste de cosméticos em animais, mas isso ainda tem de ser discutido, com calma e racionalidade, entre cientistas e Congresso”, diz Morales.

Enquanto a pesquisa científica seria eticamente permitida por ter objetivos maiores, diversas outras atividades rotineiramente praticadas pelo homem seriam, elas sim, cruéis e injustificáveis. “Veja a pesca esportiva, na qual o animal é fisgado, tirado da água e depois devolvido ao mar. É lógico que ele sofre – e em troca de pura diversão. Isso é sacanagem. O mesmo acontece com algumas raças de cachorro, criadas apenas para o prazer humano de ter um pet. São animais com deformações físicas, dificuldade para respirar, problemas de pele. O indivíduo pode até cuidar bem do animal, mas ele claramente sofre. E em troca do que? Em troca do indivíduo ter um cachorro para amar. Isso é pura incoerência”, afirma.

Cosméticos na mira – Pelo mesmo motivo, Gilson Volpato se coloca contra a o uso de cobaias animais em pesquisas para cosméticos – o que ainda é aprovado pela legislação brasileira. “São duas pesquisas diferentes. Uma visa um bem maior, a outra fazer um novo tipo de perfume.” Na sua opinião, a indústria da beleza deveria achar outro jeito de testar os produtos ou parar de lançá-los.

O Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) admite discutir a proibição de testes de cosméticos em animais. Uma série de questões legais precisa, no entanto, ser acertadas primeiramente. “Estamos caminhando para isso, mas é uma regra que precisa ser discutida com racionalidade entre cientistas, técnicos e parlamentares”, diz Marcelo Morales, coordenador do Concea.

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Debate eleitoreiro – Segundo os cientistas, a invasão do Instituto Royal tornou menos saudável a atmosfera em que o debate acontece no país, e cada vez menos racional. Laboratórios de faculdades procurados pelo site de VEJA para participar da reportagem preferiram se abster, com medo da reação de ativistas, da invasão de seus laboratórios e da perda de anos de trabalho.

Não é uma questão de criticar todas as organizações de defesa dos direitos dos animais. Segundo Volpato, a ação desses ativistas tem sido, historicamente, muito importante. “É bom ter alguém olhando e fiscalizando nosso trabalho. Em função de denúncias desses grupos, já deixamos muitas práticas para trás, verdadeiras atrocidades deixaram de ser cometidas e hoje temos uma legislação sobre esse assunto”, diz. “Mas eu queria saber daqueles que querem banir totalmente as pesquisas com animais o que eles diriam para quem tem um parente internado em um hospital.”

A volta dessa discussão entre políticos foi ainda mais atribulada e irracional. Movidos pela poderosa cena do resgate dos beagles, deputados já se pronunciaram a favor da criação de um CPI para investigar o caso e, quem sabe, proibir todos os testes com animais. As maiores autoridades no assunto não podem ficar fora dessa discussão. “Quando o político entra no debate, ele vem pensando em que posição tomar para ganhar a próxima eleição, em qual discurso será melhor para ele”, diz Volpato. “Em países sérios, os políticos ouvem os cientistas envolvidos quando discutem questões técnicas. Infelizmente no Brasil, a opinião dos cientistas costuma ser ignorada.”

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