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Podemos decretar a própria morte?

Com um câncer sem cura, a americana Brittany Maynard, de 29 anos, marcou a data do fim de sua vida: morreu no último fim de semana. Ao site de VEJA, cientistas explicam como a decisão revela uma ampla discussão ética sobre temas como o valor da vida, a liberdade individual e o papel dos médicos nas últimas etapas da existência

Por Rita Loiola e Vivian Carrer Elias
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h08 - Publicado em 3 nov 2014, 17h22

Na noite deste sábado, a americana Brittany Maynard, de 29 anos, tomou um comprimido que obteve por meio de uma prescrição médica e decidiu encerrar a sua vida. Diagnosticada em janeiro com um câncer incurável no cérebro, ela optou pelo suicídio assistido para não sofrer mais com os sintomas da doença, com os efeitos adversos do tratamento e com a inevitável evolução do tumor. Por isso, em junho, mudou-se da Califórnia para Oregon, um dos cinco Estados americanos que autorizam a prática em pacientes terminais.

Oregon foi o primeiro Estado americano a autorizar o suicídio assistido, em 1997. Dois anos depois, o Departamento de Saúde Estadual passou a financiar os custos de pacientes que escolhem morrer com a ajuda de um médico. Desde então, segundo o governo local, 1 173 pessoas obtiveram prescrição de drogas para encerrarem suas vidas, mas apenas 752 tomaram os comprimidos. Segundo as diretrizes regionais, um paciente que deseja cometer suicídio assistido deve ser adulto, estar consciente e ter sido diagnosticado com uma doença terminal que provocará a sua morte em até seis meses.

O fim da vida

EUTANÁSIA, SUICÍDIO ASSISTIDO

O suicídio assistido, assim como a eutanásia, são práticas que abreviam a vida e o sofrimento do paciente com doença incurável.

O primeiro país a permitir brechas na legislação que autorizam a eutanásia foi o Uruguai, em 1934. Em países onde essas práticas são permitidas, como Holanda, Bélgica e Suíça, elas ocorrem após o médico constatar que o indivíduo possui uma condição cuja progressão é irreversível. A decisão de submeter-se aos procedimentos cabe ao paciente, desde que ele esteja consciente e sem diagnóstico depressivo.

No suicídio assistido, é o próprio paciente que atua na morte, tomando um medicamento, por exemplo, enquanto na eutanásia há a intervenção de um profissional de saúde.

Ao autorizar o suicídio assistido, o Estado suspendeu as grandes questões éticas que caracterizam o debate em torno da prática, permitindo que médicos tivessem atuação na morte de um paciente sem que isso caracterizasse um crime. Porém, nos locais onde a atuação do médico na morte de pacientes terminais não é permitida, essas discussões são cada vez mais presentes.

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Medicina – “Só existe um tema filosófico realmente sério, o suicídio”, escreveu o pensador franco-argelino Albert Camus. Como todo tema filosófico, ele seguirá permanentemente em aberto.

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O núcleo das discussões sobre o suicídio assistido, contudo, não está apenas na decisão de um indivíduo de tirar a própria vida, mas no fato de que a medicina é chamada a ajudar nesse processo. Para que a morte de Brittany ocorresse, foi preciso que lhe prescrevessem um medicamento.

A questão é até que ponto a medicina deve usar suas ferramentas para prolongar a vida de um paciente – e se existe um ponto em que ela pode abandonar essa missão de lutar pela vida e acatar o desejo contrário de um doente.

Há médicos que defendem a autonomia do paciente acima de qualquer outro fator, outros acreditam que abreviar a vida de uma pessoa, independentemente de seu estado de saúde, seria assumir que o ser humano deixa de ter valor ao se aproximar da morte.

Autonomia – A ideia de que somos livres para decidir como queremos viver – e morrer – justifica a opção de pacientes como Brittany por encerrar a própria vida para médicos como Artur Caplan, diretor de Ética Médica da Universidade de Nova York.. “A decisão que ela tomou é absolutamente defensável e ela é livre para isso. Tem uma doença terminal, rejeita o sofrimento futuro, não quer usar os tratamentos e está em um lugar onde a lei permite o suicídio assistido”, diz Caplan.

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Segundo Reinaldo Ayer Oliveira, professor de bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), no caso do suicídio assistido, o papel do médico se restringe a informar sobre o prognóstico de sua doença, e não incentivar a opção pelo fim de sua vida. E, a partir dessa informação, a decisão cabe somente ao doente. “O que está em jogo é a questão da autonomia do paciente e a possibilidade de ele não aceitar ser submetido a práticas terapêuticas que tentam manter a vida de qualquer forma, que é o que chamamos de medicina inútil”, diz.

Para o professor da USP, é preciso que os médicos mudem a forma como encaram a morte – a base da medicina pensada por Hipócrates nos século V a.C. é a de não matar o paciente para garantir o vínculo de confiança com ele. “Desde a formação, os médicos aprendem que a profissão existe para lutar contra a morte. No entanto é preciso entender que a vida e a morte são fenômenos da natureza e só os homens têm consciência disso. O certo seria dizer que os profissionais da medicina lutam pela vida – e não para evitar a morte a qualquer custo.”

Valor – Existe uma corrente de pensamento, no entanto, que coloca a ética médica acima da vontade do doente terminal e não ve o suicídio assistido como algo justificável. “Ninguém precisa de um médico para cometer suicídio. E ele não pode ser meramente um instrumento da vontade do paciente. Mesmo em lugares onde eutanásia e suicídio assistidos são legalizados, na minha visão, ainda é imoral que o médico ofereça essas práticas como alternativas”, afirma Daniel Sulmasy, professor de Medicina e Ética da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.

Os médicos que pensam dessa forma acreditam que o ser humano tem valor até o último momento de vida e que, portanto, uma morte planejada não é moralmente aceitável. “O caso de Brittany mostra um aspecto do nosso tempo, que é o de dar importância ao ser humano apenas enquanto ele produz, está feliz, bonito e saudável. Quando estamos perto da morte, parece que perdemos esse valor”, afirma Maria Goretti Maciel, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP).

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“A ética se apoia no reconhecimento do valor intrínseco de cada um e, por isso, o suicídio é a primeira coisa que deve ser banida”, explica Daniel Sulmasy. “Acabar com a vida só pode ser permitido se for concluído que aquele ser não tem valor. É por isso que o suicídio assistido está errado. Não podemos, como uma sociedade, deixar que os pacientes acreditem que suas vidas não têm importância alguma.”

Fim da dor – Para muitos especialistas, o suicídio assistido ou a eutanásia não podem ser a única opção oferecida a pacientes terminais. É importante que essas pessoas tenham acesso a cuidados específicos para doenças graves. Esse é um campo recente da medicina, que inclui os cuidados paliativos, método que se propõe a melhorar o dia a dia dessas pessoas, sem abreviar ou prolongar a vida. “Porém, a maior parte dos médicos é particularmente inábil na difícil tarefa de conversar com pacientes sobre quais são os objetivos, o que realmente é possível fazer e qual a melhor abordagem para o fim da vida”, diz Harold Pollack, professor do Centro de Estudos de Administração em Saúde da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.

Nesta linha de raciocínio, há profissionais que defendem que o suicídio assistido e a eutanásia devem se tornar opções viáveis somente quando os cuidados paliativos não são mais eficazes no alívio do sofrimento dos pacientes. “Essas práticas para abreviar a vida devem ser incluídas em uma lógica de total exceção”, afirma José Roberto Goldim, professor de bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Medo da morte – A história de Brittany ficou conhecida internacionalmente após ela publicar vídeos nos quais falou sobre sua doença e a decisão que tomou. Os seus depoimentos foram divulgados no site da Fundação Brittany Maynard, criada por ela para “expandir a morte com dignidade a todos” e arrecadar fundos para a Compassion & Choices, organização americana dedicada a melhorar os cuidados no fim da vida. A exposição de sua vida fez com que as pessoas se deparassem com um tema sobre o qual não estão acostumadas a conversar: a morte.

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Afinal, decidir sobre o que fazer em relação aos últimos momentos da vida ainda é um tema tabu. “Há um aspecto-chave em toda essa discussão que é nosso medo de lidar com a morte. Esperamos muito de nossos sistemas de saúde: esperamos que ele não nos deixe lidar com os momentos derradeiros da existência”, diz Pollack, da Universidade de Chicago. “Acredito que o apelo desse caso revela a falência universal de nosso sistema de saúde em aliviar o sofrimento e manter a dignidade de pacientes no fim da vida.”

Independentemente da posição que têm sobre essa questão, especialistas concordam que é preciso que médicos e sociedade reflitam, por exemplo, sobre até que ponto vale submeter pacientes a tratamentos invasivos ou sobre como a ética médica deve se relacionar com a vontade de um paciente ter uma morte digna. Mesmo onde o suicídio venha a ser aceito, é necessário compreender que os cuidados paliativos devem ser colocados ao paciente antes do suicídio assistido ou da eutanásia, fazendo com que práticas que abreviam a vida não sejam a única opção de doentes terminais, mas, sim, a última.

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