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Os rótulos sexuais estão chegando ao fim?

Os g0ys, homens que gostam de outros homens, mas não se consideram gays, colocam à prova as barreiras tradicionais entre os gêneros. A ciência aponta que o comportamento sexual é tão múltiplo que as categorias, como as conhecemos, podem estar acabando

Por Rita Loiola e Juliana Santos
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h11 - Publicado em 8 jun 2014, 08h29

Aos 27 anos, o paraense Joseph Campestri, morador de Brasília, descobriu que era g0y (g-zero-y). Ele gosta de outros homens, troca carícias íntimas com eles, mas não se considera gay. Sexo, só com mulheres. Foi em um grupo na rede social Facebook, em 2011, que Campestri descobriu que existiam outras pessoas assim, autointituladas g0ys. O termo surgiu nos Estados Unidos, por volta dos anos 2000 e, dez anos depois, chegou ao Brasil por meio de blogs. Em novembro do ano passado, a página do Facebook “Espaço G0ys e afins” contava com 43 participantes. Hoje, esse grupo é uma das principais comunidades de g0ys por aqui, com 1 994 perfis. Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Salvador e Belo Horizonte são as cinco capitais que mais concentram g0ys, de acordo com estatísticas dos blogs e redes sociais onde eles se apresentam.

“Os g0ys não se enquadram nos padrões heterossexual, homossexual ou bissexual”, diz Campestri, de 30 anos, um dos líderes do movimento no Brasil e o criador de sua bandeira, com faixas em tons de azul. A maior parte dos g0ys se diz hétero e mantêm relacionamentos com mulheres – alguns são até casados. “Os homens com os quais me envolvo na privacidade podem ter qualquer orientação sexual, isto é, podem ser g0ys ou não. Posso me relacionar com todos os homens por quem eu me sinta atraído.”

Pessoas como Campestri mostram que as fronteiras entre as orientações sexuais heterossexual, homossexual ou bissexual são, cada vez mais, colocadas à prova. O Facebook adicionou, em fevereiro deste ano, uma opção customizada para os usuários que escolhem o inglês americano como idioma dando a eles 50 alternativas de gênero. A pessoa pode se definir como andrógina, transexual, pangênera, fluida, entre outras denominações. No início de abril, a Suprema Corte da Austrália concedeu a uma pessoa nascida homem, que fez a cirurgia de mudança de sexo, a opção de gênero “não-específica”.

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A multiplicação do sexo – À primeira vista, essa confusão entre gêneros, orientações e expressões sexuais é um fenômeno recente. Mas, para os cientistas que estudam o comportamento humano, a época em que vivemos – com muitas informações circulando nos meios de comunicação – apenas deu visibilidade a práticas que há muito são vividas na intimidade.

“Hoje, com o estigma e os preconceitos diminuindo, as pessoas se sentem mais livres para falar de sexo e declarar suas preferências”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Projeto Sexualidade (ProSex), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). “O mundo está ficando menos dicotômico e passamos a questionar o que significa ser homem ou mulher. E, agora, vamos ter que encontrar formas de lidar com todas essas formas de sexualidade que estão aparecendo.”

Outro fator que colaborou para tirar da sombra comportamentos que fogem do tradicional foi o avanço da ciência, que mostrou que nem todas as atitudes distantes do convencional são doenças ou transtornos. “Somados, os elementos sociais e biológicos estão mostrando que os homens podem ter um comportamento sexual mais variado do que, tradicionalmente, se acreditava”, afirma a psiquiatra Alessandra Diehl, coordenadora da Pós-Graduação em Transtornos da Sexualidade e Saúde Sexual da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “A sexualidade é uma área fluida.”

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Inúmeros caminhos – De acordo com os médicos e psiquiatras, sexo biológico, gênero, orientação e expressão – elementos que formam o comportamento sexual humano – não são opções divididas apenas entre o feminino e o masculino. São gradações e podem ser combinadas, dando origem a inúmeras possibilidades. E isso é verdade mesmo para o sexo biológico. Enquanto a maioria das pessoas nasce com órgãos sexuais de apenas um dos gêneros, outras vêm ao mundo com os dois (os hermafroditas) e há aquelas que nascem com o órgão feminino, mas têm resquícios do masculino e vice-versa.

Mas o campo que pode ganhar mais definições e denominações diferentes é o da orientação ou preferências sexuais, isto é, o sexo por quem uma pessoa se sente atraída. Além dos tradicionais LGBT para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, já há novas classificações em inglês que incluem ao final da sigla as letras QIA, que significam “questionando”, “intersexo” (equivalente ao hermafrodita) e “assexuado”.

Tantos nomes novos, obviamente, não querem dizer que homens e mulheres heterossexuais possam ser considerados “uma minoria entre outras”. “É importante notar que, em todas as culturas ao redor do mundo, o comportamento homossexual é minoria. O que estamos descobrindo é que, talvez, ele não seja tão raro quanto imaginávamos”, explica o médico Amílton dos Santos Júnior, pesquisador do departamento psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A parte majoritária da população é heterossexual, embora mesmo esses possam ter experiências que fogem a essa norma. Admitir uma experiência sexual com alguém do mesmo sexo não torna uma pessoa homossexual ou de outro gênero.”

História do sexo – A enorme variação entre as orientações sexuais foi identificada pela primeira vez nos anos 1950 pelo biólogo americano Alfred Kinsey (1894-1956), pioneiro em estudos sobre a sexualidade humana. Reunindo cerca de 18 000 entrevistas de pessoas das mais variadas classes e profissões, feitas a partir dos anos 1930 até sua morte, o cientista elaborou a Escala Kinsey, que ia de um comportamento exclusivamente heterossexual até o exclusivamente homossexual. Entre os dois extremos, identificou cinco gradações, que mesclavam as duas atitudes: heterossexuais com alguns eventos homossexuais, heterossexuais com muitas relações com o mesmo sexo, bissexuais, homossexuais com muitas relações heterossexuais ou homossexuais com raros eventos heterossexuais.

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Atualmente, psicólogos e psiquiatras identificaram muito mais que as sete categorias definidas por Kinsey. Além de serem numerosas – os especialistas chegaram à conclusão que as diversas possibilidades não são fechadas em um número único ou finito – elas ainda podem mudar ao longo da vida. “O que ocorre é que, predominantemente, nos sentimos atraídos por um sexo, mas, incidentalmente, podemos gostar de outro”, explica Alessandra. “A ciência nos dá indícios para acreditar que a orientação sexual é inata. Nascemos com tendências, mas elas vão se transformando ao longo da vida, de acordo com as influências e experiências de vida.”

Pan-gênero – Desde criança, Föxx Salema, de Bragança Paulista (interior de São Paulo), sabia que o sexo com que nasceu não correspondia a seus sentimentos e inclinações. Nasceu homem, mas sentia-se mulher. Aceitar essa situação causou inúmeros conflitos na adolescência. Entrou em depressão, tentou se matar e demorou a aceitar que era transgênero.

Hoje, aos 36 anos, é vocalista de uma banda de metal e hard rock, tem feições masculinas e define-se com identidade feminina. Embora não queira mudar de sexo ou adotar uma aparência de mulher, pede para que os interlocutores usem o pronome “ela” nas conversas e afirma que se relaciona com “pessoas” – homens, mulheres, travestis ou transgêneros. Föxx diz que as dúvidas a respeito de sua identidade só tiveram fim há poucos anos quando, pelas redes sociais, encontrou outras pessoas que também não se encaixam nas categorias fixas de homem, mulher ou gay.

Base biológica – Historicamente, os debates sobre orientação sexual se dividem entre os que afirmam que alguém nasce gay ou torna-se assim de acordo com as influências do ambiente onde vive. Para resolver o embate, desde os anos 1990, os cientistas buscam identificar bases biológicas para a variedade sexual que existe entre os seres humanos. Alguns, como o neurocientista anglo-americano Simon LeVay, resolveram levar a cabo estudos sobre as diferenças entre os cérebros de gays e heterossexuais para mostrar como a mente humana processa os impulsos sexuais.

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Em 1991, o pesquisador examinou o hipotálamo de homens gays – mortos pela aids – e descobriu que uma estrutura chamada INAH-3 era de duas a três vezes menor que a de heterossexuais. Essa região costuma ser também menor em mulheres que em homens. Apesar de questionada pela comunidade científica – não se sabia se a diferença estava relacionada à experiência gay ou à doença – essa foi uma das primeiras evidências de que a orientação sexual pode ter origem biológica.

“Se olharmos as centenas de estudos que foram publicados nos últimos anos, eles apontam que eventos ocorridos no cérebro antes do nascimento têm forte influência na orientação sexual de alguém. Há genes e hormônios sexuais envolvidos nesse processo”, diz LeVay. “Ninguém tem o poder de escolher seus sentimentos sexuais – ou seja, por quem é atraído. A escolha está no que fazer com essas emoções: definir o comportamento sexual, relacionamentos ou como se apresentar à sociedade.”

Genética sexual – A maior parte das pesquisas atuais relacionadas à orientação sexual concentra-se na genética. Alan Sanders, pesquisador da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, terminou este ano o maior estudo genético já realizado sobre o assunto. Reuniu 400 irmãos gays (pouco mais de 800 homens) e, durante dez anos, estudou o DNA dessas pessoas para tentar descobrir se há componentes genéticos que definem se alguém é homossexual. Os primeiros resultados da pesquisa, ainda não publicados, confirmam as pesquisas de Dean Hamer, do Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, chamado de pai do “gene gay”. Em 1993, Hamer viu que uma região do cromossomo X, chamada Xq28, era igual em muitos irmãos homossexuais. O estudo de Alan Sanders descobriu não um, mas dois cromossomos que aparentemente influenciam na orientação sexual: o Xq28 e o cromossomo 8.

No entanto, o pesquisador é categórico ao afirmar que a orientação sexual não é determinada apenas pela genética ou pela biologia. O ambiente social, cultural, familiar e as experiências psicológicas também têm forte influência. “Há muitas contribuições ambientais sobre as quais sabemos muito pouco. O que sabemos com certeza é que a escolha da orientação sexual não é consciente ou maleável. Elas são congênitas, naturais e definidas muito cedo”, afirma Sanders.

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Característica natural – Desde 1973, a Associação Americana de Psiquiatria não considera mais a atração por pessoas do mesmo sexo uma doença – foi quando homossexualismo virou homossexualidade. Até 2012, estar em um corpo de um gênero e sentir-se em outro era considerado um transtorno. Desde o início do ano passado, entretanto, o transtorno de identidade de gênero tornou-se uma disforia, ou seja, uma angústia por pertencer a um corpo que não é o seu. A denominação, adotada no Dicionário de Saúde Mental (DSM-5), manual feito pela associação americana, deve ser revista também pela Classificação Internacional de Doenças (CID-11), que deverá ser publicada em 2015 pela Organização Mundial de Saúde.

Para parte dos especialistas, porém, não pertencer à definição anatômica do sexo biológico ou não enquadrar-se nos gêneros binários tradicionais não é sequer uma angústia. É apenas mais uma característica, natural, encontrada em todos os animais.

Para o psiquiatra Alexandre Sadeeh, coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), as possibilidades sexuais humanas são tantas que as diversas denominações jamais darão conta de nomear a todas. “Tantas divisões esvaziam o tema. Quem sofre por estar em um corpo em que não se reconhece pode se submeter à cirurgia, feita com acompanhamento e tratamento gratuito no Brasil desde 2008. No entanto, é importante saber que há milhares de variações e combinações possíveis. A biologia dá a base determinante e muitos outros fatores agem para variá-la.”

“Estamos em uma fase de transição em que comportamentos e expectativas sociais e sexuais estão se transformando. É um período em que os parâmetros parecem ter desaparecido e isso, não necessariamente, vai permanecer”, afirma a psiquiatra Maria Inês Lobato, coordenadora do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas de Porto Alegre e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Os padrões típicos do que é ser homem ou mulher mudaram, mas ainda não estão definidos. É uma discussão que ainda vai nos acompanhar por um bom tempo.”

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