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O primeiro crime do aquecimento global: o bacalhau sumiu

O aumento de temperatura, que com o esforço internacional atual deve chegar a 2,7°C até o fim do século, afetará a biodiversidade, a disponibilidade de água potável e a economia internacional

Por Raquel Beer Atualizado em 9 Maio 2016, 14h45 - Publicado em 31 out 2015, 21h23

O acréscimo de 2,7 °C nas temperaturas globais, de acordo com o último relatório da Convenção da Nações Unidas para Mudanças Climáticas (UNFCCC), terá impacto direto sobre os cardumes em um dos peixes mais apreciados do mundo: o bacalhau. Um estudo publicado na revista científica Science na última quinta-feira (28) revela como o aquecimento das águas do Golfo do Maine, na costa Nordeste americana, tem relação direta com o desaparecimento do bacalhau em New England, nos Estados Unidos. Segundo a pesquisa, as altas temperaturas da água diminuem a reprodução do peixe – naturalmente um animal de mares gelados. Em novembro de 2014, a população de bacalhau na região já estava 97% abaixo do nível considerado sustentável pelos biólogos americanos.

É a primeira vez que os pesquisadores conseguem ligar aumento das temperaturas ao desaparecimento do peixe, com dados e medições concretas. Para isso, a equipe de pesquisadores de seis instituições diferentes, como a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (Noaa, na sigla em inglês), a Universidade do Maine e o Instituto Salk para Estudos Biológicos, analisou dados sobre a temperatura da superfície da água desde 1982. As conclusões mostraram que, entre 2004 e 2013, as águas Golfo do Maine esquentaram mais rápido que 99,9% dos oceanos do planeta.

São duas as explicações para o aumento acentuado de temperatura: o aquecimento da atmosfera, mas também a alterações na Corrente do Golfo, que começou a trazer águas mais quentes para a região do Maine.

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Declínio – Apesar de só agora o aumento da temperatura das águas ter sido cientificamente registrado, a situação frágil do bacalhau não é novidade. Há tempos a indústria pesqueira percebeu que a população de peixes estava diminuindo e os esforços para reverter o quadro culminaram em uma ampla política de restrição de pesca em 2010. As novas regras proibiram a captura recreativa da espécie e, nos últimos três anos, diminuíram a cota que poderia ser pescada comercialmente em 90%. Tudo isso, contudo, não foi suficiente para resgatar a população do peixe, justamente porque as cotas foram estabelecidas sem considerar os efeitos do aumento de temperatura. Como o aquecimento das águas também é um fator de tensão populacional para os peixes, a quantidade de pesca permitida continuava muito alta.

“Quando uma espécie de peixe fica ameaçada, geralmente nos perguntamos se a causa é a pesca ou o clima, mas são os dois”, disse em uma coletiva de imprensa a pesquisadora Janet Nye, da Universidade de Stony Brook, nos Estados Unidos. “Se o único stress que esses peixes sofrem fosse o aumento de temperatura, provavelmente eles conseguiriam se recuperar.”

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A relação entre a temperatura e a quantidade de peixes não é nova, mas os dados nunca foram incluídos nos modelos de proteção dos animais. “(O estudo) é um alerta para integrarmos todos os dados sobre clima, ecologia e manutenção das espécies”, complementou Kathy Mills, cientista do Instituto de Pesquisa do Golfo do Maine.

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Primeiros indícios – Mais que provar o impacto das mudanças climáticas sobre a população de bacalhau pescado na região americana de New England, a nova pesquisa prenuncia as consequências devastadoras das mudanças climáticas. O aumento de temperatura global não significa simplesmente que enfrentaremos dias mais quentes, mas que toda a configuração mundial, em termos ecológicos, econômicos e sociais, passará por mudanças.

O relatório divulgado pela Convenção de Mudanças Climáticas da ONU na última sexta-feira (30) mostrou que, com os atuais comprometimentos dos 146 países para reduzir emissões de gases do efeito estufa (que hoje são responsáveis por 86% do carbono que chega à atmosfera), será possível diminuir as emissões em 8% até 2025 e em 9% até 2030. Isso quer dizer que, se comparadas às do período entre 1990 e 2010, as emissões de agora até 2030 terão seu ritmo diminuído em 60%. Apesar de representarem um passo na direção certa, de um mundo de baixo carbono, os números não têm a ambição necessária: com essas metas, o aquecimento até o final do século deve ser de 2,7°C. Ou seja, a meta de limitar o aumento de temperatura em 2°C, estabelecido na Cúpula do Clima de 2010, em Cancun, não será alcançado.

“As metas conseguem limitar a projeção de aumento de temperatura para 2,7°c até 2100, o que não é suficiente de maneira alguma, mas já é um valor menor do que o estimado por muitos antes de as metas serem apresentadas”, disse Christiana Figueres, secretária-executiva da Convenção de Mudanças Climáticas da ONU.

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Visto de maneira isolada, o valor de 2,7 graus pode não parecer alarmante. Contudo, o planeta, assim como os humanos, os animais e as plantas, são vulneráveis mesmo ao aumento mais sutil de temperatura. Basta considerar a temperatura corporal do homem: o natural é 37°C e um aumento de apenas 0,8°C caracteriza febre. Se essa pequena alteração é capaz de causa mal-estar e doença nos humanos, o que dizer de 2,7°C graus para o planeta?

Estimativas feitas por cientistas revelam que, com esse aumento, uma porcentagem 26% maior de pessoas irá sofrer com a escassez de água até 2080, em comparação com a taxa de 1980. Nesse mesmo ano, o número de pessoas expostas a enchentes será seis vezes maior. A biodiversidade também será afetada, e um bom exemplo são os corais: um terço deles será degradado devido às águas mais quentes nas próximas décadas. Haverá também reflexos para a economia, já que o calor deve diminuir a produtividade de trabalhadores em 20% até 2100.

É possível, porém, que os seres vivos possam se adaptar a um mundo mais quente. Um estudo também publicado na Science, em junho deste ano, mostrou que alguns corais da Grande Barreira de Corais da Austrália já desenvolveram genes para sobreviver no calor. Os especialistas, no entanto, veem esses estudos com cautela.

“Algumas espécies devem se adaptar a um mundo mais quente. Mas há dois pontos importantes: de quão mais quente estamos falando? E quais as consequências da perda daqueles animais que não conseguirem sobreviver?” disse a VEJA a jornalista americana Elizabeth Kolbert, autora do best-seller A sexta extinção, livro sobre os impactos do homem na natureza. “Mesmo que apenas 10% das espécies vivas do planeta sejam perdidas, é muita coisa. Além disso, devemos lembrar que tudo no planeta é conectado: um animal extinto afeta aquele que se alimentava dele, por exemplo.”

De acordo com os cientistas, o colapso do bacalhau da região americana de New England funciona como um alerta. O compromisso com a prevenção do aumento das temperaturas não deve ser entregue apenas a representantes nacionais – as cidades devem começar a estudar como desenvolver programas de sustentabilidade locais, e a iniciativa privada já percebeu que pode começar a enxergar a questão ambiental como uma possibilidade de investimento e, por que não, lucro. O mundo, e o bacalhau do nordeste americano, agradece.

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