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Contra a ciência: como a dramática epidemia de zika foi usada por defender uma causa oportunista e ideias retrógradas

Na última semana, um grupo de médicos argentinos que combate o uso de pesticidas divulgou a ideia de que um larvicida poderia ser a causa do alto número de casos de microcefalia no Brasil. De acordo com especialistas, a teoria, sem qualquer base científica, é um exemplo de como é possível aproveitar uma emergência de saúde pública para ir contra o progresso científico

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2016, 14h45 - Publicado em 28 fev 2016, 10h16

Na área de saúde pública, doenças e epidemias desafiadoras para a ciência são, historicamente, um prato cheio para a defesa de causas oportunistas e ideias retrógradas. Nos últimos dias, enquanto os pesquisadores estavam lutando para descobrir qual a relação exata entre o vírus zika e o número elevado de bebês nascidos com microcefalia no Brasil, o rumor de que um larvicida estaria por trás das malformações se espalhou pelas redes sociais. Notas e reportagens em blogs e colunas ambientalistas em inglês e espanhol diziam que médicos brasileiros e argentinos estariam atribuindo a microcefalia ao piriproxifeno (pyriproxifen, em inglês), um larvicida aprovado pela Anvisa e usado para combater o Aedes agypti em todo o mundo. Sem qualquer base científica e, mesmo desmentida, a teoria foi o suficiente para que o governo do Rio Grande do Sul suspendesse o uso do larvicida na água potável, colocando em risco cerca de 10% da população que não recebe água tratada no Estado.

“Entre os inúmeros interesses que devem existir por trás desse tipo de iniciativa, o único que certamente não está presente é o interesse pela saúde pública”, diz o médico Flávio Zambrone, presidente do Instituto Brasileiro de Toxicologia (IBTox), em Campinas. “Esse tipo de especulação, sem qualquer aval da ciência, só traz problemas. A epidemia que vivemos é séria, grave e precisamos usar contra ela todas as ferramentas conhecidas e eficazes. Impedir uma das formas de combate ao mosquito é, no mínimo, temerário e só vai trazer danos e prejuízos à população.”

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As reportagens que circularam em redes sociais nos últimos dias citavam um relatório publicado no início de fevereiro pela Red Universitaria de Ambiente y Salud – Médicos de los Pueblos Fumigados (Reduas, na sigla em espanhol), uma associação argentina de médicos e pesquisadores que são, em sua maioria da Universidade de Córdoba, e combatem o uso de pesticidas e o modelo moderno de agricultura, com o uso de insumos químicos e industriais. O texto menciona incorretamente uma nota técnica da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), sobre os métodos de combate ao Aedes aegypti, dizendo que “não é uma coincidência” o uso do piriproxifeno em água potável e o aumento dos casos de microcefalia no Nordeste brasileiro. Segundo o artigo, a Abrasco sugeria que fossem feitos estudos epidemiológicos que levem em consideração a “relação causal” entre as más-formações dos bebês e o uso de piriproxifeno.

Mas o estudo argentino, que apenas reúne informações de fontes diversas, está longe de ter a seriedade de pesquisas científicas que passaram pela rigorosa revisão dos pares. Seus autores são o “time Reduas”, coordenado pelo pediatra Medardo Avila Vazquez. Vazquez é conhecido pela luta contra os pesticidas na Argentina e, em abril do ano passado, esteve a ponto de ser denunciado formalmente pelo decano da faculdade de agronomia da Universidade Nacional de Córdoba com a acusação de divulgar na imprensa dados de suas investigações científicas de maneira enganosa.

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Usando uma emergência de saúde pública, a entidade procurou defender a bandeira dos “povos fumigados” de forma irresponsável, usando a ciência apenas como verniz. A entidade é conhecida por promover discussões contra o modelo industrial de agricultura, usando para isso seus relatórios e estudos. Uma dessas reuniões, o Congresso Nacional dos Médicos de Povos Fumigados, teve entre os apoiadores de 2015 Ongs e a rede de advogados contra o uso de pesticidas, além de um sindicato e um grupo entitulado ecossocialista. O vídeo de apresentação da Reduas se encerra com a frase “o modelo industrial está gerando morte”, deixando claras as intenções do grupo – mesmo que elas não tenham qualquer base ou aval vindo de pesquisas sérias.

A força de um boato – O uso político de teorias científicas falsas ou sem comprovação é uma forma especialmente perniciosa de manipulação. Os danos são ainda maiores quando a ciência isenta ainda engatinha para decifrar o enigma de uma doença ou epidemia.

Para os cientistas, é exemplar o episódio do estudo do médico britânico Andrew Wakefileld, que sugeriu que a vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) estava na origem do autismo, uma doença cujas causas, até hoje, são um desafio para os pesquisadores. O artigo, publicado em 1998 por Wakefield e outros 12 autores na conhecida revista científica Lancet, causou imensa repercussão. Diversas equipes tentaram, sem sucesso, reproduzir o estudo e, quase dez anos depois, uma longa investigação revelou que o estudo era uma fraude: além dos dados fabricados, a pesquisa havia sido patrocinada por advogados que trabalhavam contra indústrias produtoras de vacinas. O estudo foi retratado e Wakefield teve o registro médico cassado, mas o estrago estava feito.

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Apesar de jamais ter sido encontrada qualquer evidência científica da ligação entre o autismo e a vacina, milhares de pais até hoje se recusam a imunizar os filhos por temer as consequências apontadas pelos estudo fraudulento de Wakefield. Muitos pagaram por isso. Em 2014, os Estados Unidos viveram um surto de sarampo, o maior desde 2000, quando a doença foi considerada eliminada do país.

“É muito fácil fazer associações equivocadas em cima de metade das evidências. Foi o que aconteceu no caso antigo da associação entre as vacinas e o autismo e nesse episódio recente do larvicida. Algumas pessoas usaram uma doença séria de forma oportunista em defesa de seus próprios interesses, contra todos o progresso científico. Para demonstrar causa e efeito é preciso não de um, mas de vários estudos experimentais, em modelos animais, que demonstrem claramente a relação. Sem isso, tudo o mais é especulação”, diz Zambrone.

Larvicida causa microcefalia? – Poucos dias depois da divulgação do texto da Reduas, que se espalhou rapidamente pela internet, o verbete da Wikipedia sobre o piriproxifeno em português, inglês e francês afirmava que médicos tinham levantando a hipótese de que o composto pudesse estar relacionado ao aumento da incidência de microcefalia no Brasil. A discussão foi o suficiente para que o Rio Grande do Sul suspendesse o uso do pesticida como medida preventiva, apesar de o Ministério da Saúde ter divulgado em nota que “não existe nenhum estudo epidemiológico que comprove a associação do uso de piriproxifeno e a microcefalia”.

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Em nota enviada ao site de VEJA, a Abrasco afirmou que em “momento nenhum afirmou que os pesticidas, larvicidas ou outro produto químico sejam responsáveis pelo aumento do número de casos de microcefalia no Brasil” e que a nota técnica publicada em seu site afirma apenas que considera perigoso que o controle do Aedes seja feito, principalmente, por meio de larvicidas. Não há qualquer estudo científico estabelecendo uma relação direta de causa e efeito entre o uso de larvicidas e a microcefalia.

“É sabido que um cenário de incerteza como este provoca insegurança na população e é terreno fértil para a disseminação de inverdades e de conteúdos sem qualquer (ou suficiente) embasamento científico. A Abrasco repudia tal comportamento, que desrespeita a angústia e o sofrimento das pessoas em situação mais vulnerável, e solicita prudência aos pesquisadores e à imprensa neste grave momento, pois todas as hipóteses devem ser investigadas antes de negá-las ou de confirmá-las”, diz a Abrasco.

Além disso, de acordo com o infectologista Kleber Luz, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e um dos primeiros cientistas a perceber a relação entre as infecções de zika no país e o aumento dos casos de microcefalia na região Nordeste, as cidades com o maior número de casos de microcefalia em Pernambuco, como Recife, não usam o piriproxifeno como larvicida, mas o BTI, um composto biológico.

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“Nesse momento, atribuir a um larvicida o número elevado dos casos de microcefalia não faz sentido. Quem está na linha de frente das pesquisas sabe que a relação entre o vírus e a má-formação de bebês é clara. Ainda não sabemos os detalhes dessa relação, que é complexa e, possivelmente, envolve vários fatores, mas ela é bastante forte”, diz Luz. “Em momentos como esses, de várias dúvidas sobre uma epidemia de consequências tão dramáticas, é natural que tente se encontrar um único culpado. Isso tornaria mais fácil lidar com a situação. Mas, infelizmente, não será uma ‘teoria da conspiração’ que vai solucionar a epidemia que vivemos.”

Estratégia de saúde pública – Apesar de ter ficado claro que não há relação entre o piriproxifeno e o número elevado de bebês nascidos com microcefalia no Brasil, o governo do Rio Grande do Sul decidiu manter a proibição do uso do produto em água potável. Ele continua sendo usado em locais públicos, como fontes, chafarizes ou reservatórios.

“Se possível, o melhor é que a água que bebemos não tenha nenhum veneno”, disse ao site de VEJA o médico João Gabbardo Reis, secretário de saúde do Rio Grande do Sul. “Não há evidências científicas da relação de causa e efeito entre o piriproxifeno e a microcefalia, mas há muitas dúvidas em relação ao zika e não se sabe se o larvicida não pode ser um fator coadjuvante.”

É consenso entre os profissionais de saúde pública que as decisões nessa área devem ser tomadas visando o bem-estar do maior número de pessoas, levando-se em consideração o que há de mais avançado em pesquisas médicas e científicas. Contudo, segundo os especialistas, uma das fragilidades brasileiras em lidar com a epidemia de zika é a ausência de autoridades capacitadas e confiáveis, que concentrem as informações sobre a epidemia, tomem decisões corretas e transmitam à população as últimas descobertas de maneira transparente.

“O que me preocupa nesse episódio é que, além da decisão equivocada tomada com base em uma especulação, a responsabilidade pela epidemia está sendo transmitida unicamente para a população. As medidas sanitárias básicas são um encargo do governo e é uma decisão unânime entre os cientistas que controlar o mosquito é uma forma de combate eficaz do vetor”, diz o médico Zambrone. “Em saúde pública devemos equilibrar os benefícios e malefícios e, em seguida, tomar decisões que beneficiem o maior número de pessoas. Por que, então, eliminar uma forma de combate ao Aedes, recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e usada em todo o mundo?”

No Brasil, estão em curso estudos sobre o zika feitas com a ajuda do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) americano e da Organização Mundial de Saúde (OMS), cuja comissão está no país. O vírus complexo ainda está sendo decifrado pela ciência e os pesquisadores esperam que, em pouco tempo, respostas concretas sobre sua ação comecem a ser elaboradas. Ainda não foi descoberto quais anticorpos o vírus forma ao entrar no organismo, um primeiro passo fundamental para o desenvolvimento de um exame que identifique a doença e, futuramente, tratamentos e uma vacina.

“Nesse momento, em que aguardamos que a ciência descubra o mecanismo básico do vírus, precisamos saber onde buscar informações confiáveis e isso deveria vir de uma liderança oficial. É preciso deixar bem claro que qualquer afirmação feita sem o aval científico, nesse momento, não passa de boato”, diz o infectologista Artur Timerman. “Só as respostas vindas dos laboratórios, aliadas a uma coordenação eficaz, nos ajudarão a lidar com essa epidemia que se tornou tão dramática no país.”

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